São Paulo, domingo, 31 de março de 1996
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A propaganda política transparece nas peças tardias de Shakespeare

Continuação da pág. 5-5

ROBERT DARNTON

Os espectadores certamente não deixaram de captar múltiplas alusões à política cortesã na peça de Shakespeare. Anne era dinamarquesa, e sua lua-de-mel tivera lugar em Kronborg (Elsinore, na peça). Como Hamlet, James gostava de livros e era dado a filosofar, ainda que estivesse mais para pedante que para poeta. E o que é mais importante, também ele havia enfrentado uma crise de sucessão. Sua mãe, Mary Stuart, rainha dos escoceses, era suspeita de cumplicidade na morte do pai de James, Lord Darnley (rei Henry 1º da Escócia), e casara-se com o suposto assassino, o Duque de Bothwell, pouco após o crime, exatamente como faz Gertrude na peça.
Vários assassinatos e sequestros depois -era essa a moeda corrente na política escocesa-, James, como Hamlet, teve que se haver com o problema da vingança; e, sempre tal qual Hamlet, James prevaricou. Na qualidade de rei da Escócia depois da expulsão de Mary e de sua prisão na Inglaterra, ele poderia ou bem ter tomado a via grandiosa do heroísmo, tentando salvar sua mãe, ou bem optado pelo maquiavelismo rasteiro, deixando que os ingleses a executassem. Ele hesitou, escreveu cartas dilaceradas e bajuladoras a Elizabeth e finalmente desviou a vista quando a Dama de Ferro fez as coisas à sua maneira. James sucedeu-a em 1603. A via mais rasteira levara-o ao trono inglês, mas agora o fundador da nova dinastia precisava urgentemente de legitimidade e propaganda.
Seu dramaturgo incumbiu-se do recado, adaptando toda a panóplia do teatro elizabetano à teoria do direito divino dos reis, formulada pelo próprio James em seus tratados "Basilikon Doron" e "The True Law of Free Monarchies". De acordo com Kernan, a propaganda transparece em todas as peças tardias de Shakespeare, mas coube a Macbeth e a King Lear causar a impressão mais forte sobre os contemporâneos.
Em "Macbeth", ato IV, cena 1, Shakespeare exibia no palco toda a árvore genealógica da família Stuart, de acordo com a noção histórico-mítica de James: este aparecia como descendente do rei Fergus, suposto fundador da Escócia, em 330 a.C.. A peça mostrava que os ancestrais de James remontavam assim até "the crack o' doom"; que a primogenitura fora estabelecida como princípio de legitimidade com o fim da usurpação de Macbeth e a ascensão de Malcolm; e que a linha de descendência estender-se-ia infinitamente, como o demonstrava um dos atores, erguendo um espelho para refletir para a platéia a imagem de James, sentado no "Estado" do Grande Salão de Hampton Court, em 7 de agosto de 1606.
Lear, encenado em Whitehall em 26 de dezembro de 1606, também evocava as origens primevas da realeza. Era ainda mais explícita em sua declaração das prerrogativas de James sobre a lei ordinária do país, de seu direito a dispor do país como se fosse seu. Pois não é assim que Lear retalha seu reino e dá ordens a todos sem consultar outra coisa senão sua própria vontade titânica, identificada à ordem do universo? Para Kernan, os cortesãos teriam percebido nos atos de Lear a pretensão de James a exercer suas prerrogativas reais sobre o Parlamento, especialmente em sua tentativa de atropelar a oposição da Câmara dos Comuns à união entre Escócia e Inglaterra, que restauraria a Grã-Bretanha que Lear equivocadamente dividira.
Há tempos que essa caça às alusões é praticada -por estudiosos modernos e cortesãos seiscentistas. As bruxas de "Macbeth" evocavam o tratado "Demonologie", da autoria do próprio James, bem como as "Bruxas de Lothian", um processo político de 1593, que James usara para suprimir a última ameaça da parte da facção dos Bothwell na Escócia. Olhos de lince já encontraram alusões ao poema épico de James, "The Lepanto", em algumas partes de "Otelo" (apresentada ao rei em novembro de 1604), bem como ao "Basilikon Doron" no título de "Medida por Medida" (a que a corte assistiu em dezembro de 1604). E há traços do próprio rei em vários personagens, em especial no Próspero de "A Tempestade" (montada na corte em novembro de 1611 e outra vez na primavera de 1613, para celebrar o casamento da filha de James, Elizabeth, com Frederico de Heidelberg, fato evocado na peça pelas bodas de Miranda e Ferdinando).
Todas essas associações certamente atingiam as platéias nos grandes salões em que se montavam essas peças, assim como forneceram material para infindáveis comentários de eruditos shakespearianos. Kernan passa-as todas em revista, mas sem deter-se nelas, porque as peças não podem ser interpretadas meramente como libelos políticos.
Os próprios atores não podiam encená-las como simples dramatizações ou alegorias dos fatos políticos do dia. A trupe real aprendeu essa lição em 1604, quando montou "Gowrie", peça de autor anônimo que tratava de um tema caro à propaganda Stuart: o fracasso, em 5 de agosto de 1600, na cidade de Perth, da conspiração que o Duque de Gowrie e seu irmão haviam urdido contra James. Mas a peça punha em cena o próprio rei -ofensa intolerável, que levou à supressão da peça.
Mesmo alusões indiretas podiam ser perigosas. Em 7 de fevereiro de 1601, a trupe de Shakespeare encenou "Ricardo 2º" a pedido de um grupo de nobres que, pouco mais tarde, viram-se implicados na Rebelião de Essex, um complô para alijar Elizabeth do trono. Elizabeth tomou a cena da deposição como ataque direto a ela -"Não sabeis que sou Ricardo 2º?"-, e os atores escaparam por pouco a terem seus narizes e orelhas cortados pelo carrasco público.
Ao mesmo tempo que funcionavam como propaganda, as peças não se reduziam a isso: suas alusões tinham que ser oblíquas, e seus temas não se reduziam à política. Pelo contrário: sua força em termos políticos residia em sua poesia, e seu impulso poético levava-as muito além do domínio das lutas cortesãs.
A linguagem de "Macbeth" leva seus espectadores a associar Duncan aos processos naturais -crescimento, maturidade, o passar do tempo-, enquanto que Macbeth volta-se contra a natureza, procura deter o tempo, e precipita-se na demência. Também Lear confronta as forças elementares que fustigam toda a humanidade; ele o faz em sua qualidade de rei, isto é, como alguém incomensuravelmente maior que todas as outras formas de vida. Quando vacila em meio ao turbilhão, ele arrasta consigo os seres menores ao seu redor; e quando desmaia na charneca, Lear retorna ao nível fundamental de toda existência humana.
Kernan tem um termo para esse grandiosa luta com a realidade: "cosmicização". Por desajeitada que seja, a palavra ao menos transmite o tipo de experiências que os antropólogos tentam explicar quando estudam mitos e rituais: o sentimento que o público ou os participantes têm de estarem em contato com a natureza das coisas, os fundamentos da vida humana ou a ordem do mundo.
Todos os capítulos do livro contribuem para essa conclusão, seguindo uma mesma estratégia. Primeiramente, eles tratam dos principais eventos durante os dez primeiros anos do reinado de James, que coincidiram com os dez últimos anos da carreira ativa de Shakespeare; em seguida, reúnem toda a informação disponível sobre as montagens de suas peças na corte, à procura de dados sobre as reações das platéias; por fim, eles mudam de registro e conduzem o leitor pelos meandros internos da imaginação shakespeariana. Para um desconstrucionista ou um neo-historicista, esse último passo deve parecer um passo atrás, pois supõe que um autor individual foi capaz de produzir um texto coerente, cujo sentido pode ser identificado e cuja mensagem última, ainda que temporal, ainda é capaz de falar a nós.

Tradução de Samuel Titan Jr.

OS LIVROS
"Forms and Meanings. Texts, Performances and Audiences from Codex to Computer", de Roger Chartier, foi editado pela University of Pennsylvania Press; "Shakespeare, the King's Playwright. Theatre and the Stuart Court", de Alvin Kernan, pela Yale University Press.

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