São Paulo, domingo, 31 de março de 1996
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Muçulmano tenta preservar diplomas

PETER MAASS

"Posso te pedir um favor?" Muharem Krzic disse.
"Claro", respondi.
"Tenho algo que precisaria que fosse contrabandeado para fora de Banja Luka."
Ele fez pausa. Eu devo ter demonstrado minha inquietação com a pergunta através de algum gesto. Não sabia o que ele tinha em mente, mas, mesmo que fosse o mais inofensivo dos objetos, ainda assim eu não me sentiria confortável em fazer contrabando. Porque qualquer coisa que precise ser contrabandeada, por definição, deixa de ser inofensiva, e eu sou um péssimo contrabandista.
Eu tinha de ouvir o pedido de Muharem. Nós havíamos acabado de passar duas horas em seu quintal falando sobre problemas da guerra. Muharem era o líder muçulmano em Banja Luka, maior cidade bósnia controlada por sérvios e o mais sombrio dos lugares sombrios do mundo. Ser muçulmano ou croata em Banja Luka em 1992 era quase tão assustador quanto ser judeu na Alemanha em 1942.
Amigo
Por simpatia, respeito ou pena, não sei qual dos três, eu considerava Muharem um amigo. Não havia contra ele nenhuma sentença de morte expedida pela Justiça; essas coisas não são necessárias num lugar como Banja Luka, mas a condenação estava lá, estacionada sobre sua cabeça como uma abelha voando em volta de uma flor suculenta. Enquanto conversava com Muharem, escrevi em meu caderno de anotações: "Quanto tempo mais ele irá viver?" E sublinhei a pergunta.
Muharem tinha conhecimento sobre seu destino inevitável. Certa vez, após uma entrevista coletiva, ele sussurrou para alguns repórteres: "Eu provavelmente acabei de escrever meu próprio obituário". Nós sentamos em seu jardim, que tinha plantações de tomates e cebolas. Olhei sobre as colinas e ouvi tiros, provavelmente tratava-se de mais um soldado se divertindo...
Talvez eu não pudesse atender o pedido de Muharem, mas pelo menos tinha que ouvir o que ele tinha para dizer.
"Minha filha e minha mulher estão em Zagreb, você sabe. Quando elas fugiram, levaram apenas algumas mudas de roupa com elas. Porque nós todos achávamos que os problemas não iriam durar muito. Eu estava pensando se você poderia levar o diploma delas com você..."
Diplomas. Nem mensagens cifradas, nem dinheiro ou fotos ou pessoas. Diplomas. Isso serviu para me lembrar o tipo de pessoa que os muçulmanos bósnios eram.
Muçulmano é uma palavra horrível na América porque traz consigo imagens racistas. Imagens como a do mercador de tecidos com uma mão em seu ombro e outra em seu bolso; de xeques árabes bilionários com panos brancos na cabeça, exalando pena e hipocrisia ao mesmo tempo.
Na Bósnia, essa caricatura não se adapta. Porque os muçulmanos bósnios são eslavos em vez de árabes. Eles são eslavos que se converteram ao Islã quando a Bósnia estava sob domínio turco. Um homem loiro e de olhos azuis na Bósnia pode ser tanto muçulmano quanto sérvio ou croata.

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