São Paulo, domingo, 14 de abril de 1996
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Vaca louca ou tecnologia maluca?

FRANCISCO GRAZIANO

Existe na Inglaterra um pequeno grupo de agricultores que está sendo beneficiado com a "doença da vaca louca".
São 200 produtores de carne e leite que conduzem seu rebanho segundo as regras da agricultura orgânica, onde se exige o pastoreiro natural e, quando acrescentadas, silagem e proteínas vegetais advindas de campos isentos de produtos químicos. Nada de inseticidas, herbicidas e adubos solúveis.
Entre 140 mil pecuaristas ingleses, os orgânicos respondem por apenas 12 mil dos 3,3 milhões de reses abatidas anualmente. Poucos, mas felizes.
A BSE (Bovine Spongiform Encephalopathy) está causando a maior crise da pecuária inglesa. Ninguém come mais carne, os preços despencaram. Os prejuízos serão incalculáveis. Milhares de empregos serão perdidos. As indenizações, da ordem de bilhões de dólares, afetarão os orçamentos públicos.
Os tempos serão difíceis para os pecuaristas e todo o "agribusiness" relacionado às carnes. Nunca mais a pecuária inglesa será a mesma. E a crise afetará toda a pecuária européia.
Mas, ao lado da desgraça, a centelha da esperança. Nenhum gado criado pela via orgânica foi contaminado pela BSE. Ao contrário da carne comum, a venda de carne "orgânica" aumentou.
Isso, porém, é sintoma menor da mudança. Toda a sociedade, incluindo os agricultores, está se conscientizando de que os caminhos da tecnologia pecuária levavam ao precipício.
Aqui reside a questão fundamental exposta pela "crise do bife". O problema da BSE não está nas trapalhadas do governo, na hipocrisia dos políticos ou no lobby dos pecuaristas, por mais criticável que possa ter sido a atuação deles nesse episódio.
O grande erro está na origem, na tecnologia de produção do gado europeu.
Métodos antinaturais, visando unicamente a rentabilidade imediata, foram sendo introduzidos na criação animal, transformando a pecuária numa espécie de fábrica. Numa triste indústria.
Nesse processo tecnológico, alcunhado de moderno, leis da natureza foram desprezadas. Os animais foram confinados, não pastam mais, poucos vêem o sol. Enjaulados, passaram a comer restos de aves, vísceras de carneiro, cérebros de boi.
De herbívoros foram transformados em saprófitos, ou canibais. O estresse aumentou e as doenças atacaram. Os antibióticos e uma parafernália de drogas entraram em ação. Tudo foi se artificializando. Deu na vaca louca.
Há décadas alguns cientistas vêm alertando para os riscos desse desrespeito ecológico. Na própria Inglaterra, desde 1979 um relatório da comissão real sobre meio ambiente e poluição trazia advertências sobre os perigos do fornecimento de proteína animal para herbívoros. Em 1989, já com casos de BSE conhecidos, um relatório científico criticava as práticas de alimentação nas modernas e intensivas fazendas de gado. Algumas medidas foram tomadas, mas nunca a tecnologia foi questionada seriamente.
Os consumidores ingleses, assim como os franceses, estavam estranhando a carne industrial há tempos. Embora esse desenvolvimento tecnológico tivesse barateado a carne, a perda de qualidade delas era flagrante.
O problema afeta todos os ramos animais, como a suinocultura e a avicultura. Os bichos foram transformados em coisas. Na Europa qualquer carne tem o mesmo gosto: nenhum. Sua qualidade biológica é contestável.
A criação intensiva de animais estava em xeque pela opinião pública desde 1988, quando estourou na Inglaterra a "crise do ovo". Alertados de forma sensacionalista sobre a possibilidade de contaminação humana pela bactéria salmonela, encontrada na casca de ovos, os consumidores deixaram de consumi-lo. A produção ruiu.
Os avicultores quebraram e tiveram que ser socorridos pelo governo. Da mesma forma que hoje, com o gado, a tecnologia de produção de ovos foi duramente questionada. Resultado: as galinhas começaram a ciscar novamente e a se alimentar de forma mais natural.
Hoje grande parte das embalagens trazem orgulhosas: "Ovos ecológicos, galinhas livres".
A transição da tecnologia maluca para a criação equilibrada será difícil. Dependerá da ação do governo, incentivando os agricultores à necessária reversão tecnológica na criação de gado.
Dependerá do comportamento dos consumidores e da luta dos ambientalistas. Mas que ninguém duvide: os novos rumos da pecuária européia estão traçados. E são irreversíveis.
Bom para os animais, que serão melhor tratados. Excelente para os humanos, que serão melhor alimentados. Ótimo para os pecuaristas, que se livrarão dessas doenças terríveis. Junto com os produtores orgânicos, milhares de pequenos agricultores familiares, que foram considerados "sentimentais" porque mantiveram seus rebanhos pastoreando, se fortalecerão no campo.
Não se trata de abominar a carne bovina. Os ruminantes são uma maravilha da natureza, capazes de transformar a energia fotossintetizada pelo capim em proteína disponível para os humanos. A carne de vaca é saudável. Doentes são aqueles que pretendem inverter o ciclo natural da vida.
Que por aqui, nos trópicos, sirva de lição. Nem todo aumento de produtividade é desejável, principalmente quando atenta contra a natureza do mundo.
Mais dia, menos dia, o ganho irracional acaba sendo descontado em nós próprios. Ou nos nossos filhos. Chega de passar promissórias contra o futuro.

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