São Paulo, domingo, 21 de abril de 1996
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A ciência moral de um filósofo-economista

ROGÉRIO ANDRADE
ESPECIAL PARA A FOLHA

Desde os anos 80, uma promissora linha de pesquisa tem procurado reavaliar a obra de Keynes sob um prisma em que o mesmo é visto não meramente como um economista, mas sim um "filósofo-economista", da mesma forma que também o foram Hume, Smith, Marx e Stuart Mill, para citar alguns.
Sua filosofia é encarada como o centro de gravidade em torno do qual todas as dimensões de seu pensamento (não apenas o econômico) se referem. Neste enfoque, a economia é vista como uma disciplina que lida com materiais estranhos à abordagem positivista que predomina no paradigma econômico neoclássico.
Para Keynes, a economia é "essencialmente uma ciência moral e não uma ciência natural. Quer dizer, ela emprega introspecção e julgamentos de valor" (Keynes, "Collected Writings", vol. XIV, pág. 297).
Grande parte do pensamento filosófico de Keynes existe de forma mais elaborada em seu "Treatise on Probability" (Tratado Sobre a Probabilidade, 1921), um livro cujas idéias ressoam fortemente nos trabalhos econômicos posteriores. O TP possui o que se pode denominar uma posição metodológica autônoma. Não é um livro meramente técnico sobre a teoria da probabilidade (ou de matemática), mas um trabalho no campo mais geral da filosofia da razão teórica (pura) e prática (ética), em que é considerada a aplicação da probabilidade no âmbito das ciências morais e da conduta humana.
A filosofia de Keynes (TP e no que se pode extrair de trabalhos posteriores) atribui um maior poder analítico para a linguagem comum ("ordinary language") do que para a linguagem formal ou matemática.
A lógica do discurso comum, baseada em uma lógica substancial, é oposta a uma linguagem artificial, como a linguagem matemática. A linguagem ordinária é caracterizada por estrutura aberta e número não-finito de proposições. Enfatiza intuição e raciocínios não-demonstrativos.
A visão de Keynes sobre probabilidade é também organicista e se apóia na noção crucial de complexidade, daí Anna Carabelli (1988), outra estudiosa da filosofia de Keynes, se referir ao termo "complexidade orgânica" (Keynes possui uma concepção orgânica, não atomística, da probabilidade).
A probabilidade é vista como representada por magnitudes qualitativas, transitórias, organicamente dependentes, únicas e temporalmente irreversíveis. Torna-se então uma abordagem geral dos procedimentos cognitivos em condições de incerteza em relação aos fatos da experiência cotidiana.
A probabilidade é entendida como uma lógica da "opinião" (conhecimento humano falível e imperfeito) mais do que uma lógica da "verdade" (como no positivismo). Ao invés de se assentar sobre uma regra da razão (razão analítica), o mais correto é afirmar que se baseia na regra da razoabilidade (razão prática); privilegia-se o razoável, ao invés do meramente racional.
Nesta visão, a economia torna-se um "modo lógico de pensar" e não uma "pseudo-ciência natural" (CW, XIV, p. 296). Mais do que isto, a economia passa a ser um ramo do conhecimento onde se investiga o comportamento dos agentes econômicos em condições de incerteza a partir de hipóteses cognitivas, fortemente atadas a práticas sociais e convenções, mais do que a partir de causas empíricas ou subjetivas.
O conceito de "expectativa" nas obras econômicas de Keynes é coerente com este aparato metodológico do TP. As expectativas têm caráter cognitivo (isto é, não frequentista), relativo (isto é, não absoluto ou universal), organicamente interdependente (isto é, não atomístico), qualitativo (muito mais do que numericamente mensurável ou tratável em termos de probabilidade), objetivo (isto é, não baseado em uma linguagem privada ou na psicologia individual).
A filosofia de Keynes alerta para o papel de destaque conferido na ciência moderna à simplificadora "hipótese atomística". Esta última, ao privilegiar cegamente conceitos como homogeneidade, divisibilidade, independência, reversibilidade do tempo e repetitividade dos eventos, abriu o caminho para a matematização ou a formalização.
O método de Keynes Contrário a esta agenda, do método de Keynes se pode extrair noções como heterogeneidade, interdependência relevante, irreversibilidade do tempo, singularidade dos eventos e complexidade orgânica.
Como, para Keynes, o conceito de tempo é histórico (irreversível), a probabilidade relaciona-se com objetos que são não-homogêneos e não-permanentes ao longo do tempo. Assim, a atividade do estudioso deve concentrar-se também, ao contrário da abordagem convencional, nos fatores transitórios e mutáveis, isto é, formular "modos lógicos de pensamento" levando em conta estes fatores.
Ao enfatizar a forte conexão entre teoria e prática, a probabilidade não é vista como conhecimento especulativo, mas como um guia para a conduta no dia-a-dia; teoria e ação (práxis) estão intimamente ligadas. Neste contexto, o conhecimento tem uma dimensão social, pública, comunicativa.
Tais idéias colocam o pensamento de Keynes em posição singular no que toca às tradições filosóficas. Como observado, Keynes tem uma atitude crítica em relação à lógica formal e ao atomismo lógico. A teoria da probabilidade de Keynes é caracterizada por idéias como relativismo, organicismo, abertura substância (ao contrário, por exemplo, da lógica da implicação de Russell). Portanto, é uma teoria ao mesmo tempo crítica de Russell e do Círculo de Viena.
Além disto, o TP está na contramão das conclusões do "Tractatus Logico-Philosophicus" (1921) de Wittgenstein (o "jovem" Wittgenstein). No entanto, com o benefício da distância temporal, sabe-se hoje que o pensamento de Keynes possui importantes semelhanças com as idéias contidas nas "Philosophical Investigations" (1953). Ambos viam as proposições probabilísticas como pertencentes à classe de proposições intencionais (aquelas representativas da vontade, do desejo, da ordem expectativa), as quais são consideradas como relações orgânicas, e não atomísticas, relacionadas às formas sociais da vida, e expressas em termos de linguagem ordinária.
A posição de Keynes é melhor descrita como sendo uma posição intermediária -uma "terceira via", como enfatiza Carabelli- entre os dois grandes ramos tradicionais da epistemologia, a saber, o racionalismo e o empiricismo. Situa-se naquela faixa de pensadores defensores da idéia da "suficiência da razão contingente", cuja origem está em Aristóteles e permeia as reflexões de um amplo leque de filósofos desde Locke e Hume, passando pelo Wittgenstein "maduro", e indo até, entre outros, Gadamer, Toulmin, Wright, Putnam e Habermas.
A celebração dos 50 anos da morte de Keynes em 1996 consolida a idéia de que seu pensamento continua ainda bem vivo e que é uma das ferramentas imprescindíveis para se pensar criticamente tanto a realidade como as fantasias teóricas do mundo contemporâneo.

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