São Paulo, domingo, 21 de abril de 1996
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Dois instantes de reencontro lírico da poesia e da memória

AUGUSTO MASSI
ESPECIAL PARA A FOLHA

Dois poetas e suas cidades. Duas experiências literárias convergentes na busca de um lirismo autobiográfico. Em ambas, a poesia reencontra uma de suas irmãs -a mais velha delas-, a memória. Embora desprovidos de uma radicalidade formal, os dois conseguem superar grande parte dos problemas que afetam a produção poética atual.
João-Francisco Ferreira não é o que se costuma chamar de poeta jovem. Estreou em 1953 com "Limite do Amargo" e, há dois anos, publicou "O Falar Dobrado". Estudioso da cultura hispano-americana, dirigiu o Centro de Estudos Brasileiros na Cidade do México, lecionou na Universidade do Texas e, atualmente, vive em Porto Alegre.
Nos 15 poemas deste novo livro, o autor explora a ambiguidade que há entre "morar fora" e "morar dentro de si mesmo": "Todo lugar é o seu lugar./ Como Sterne andei na terra dos outros/ e bem menos na minha./ Circulei muito au tour de ma chambre, à Xavier de Maistre,/ e que descobertas eu ali fiz! Inenarráveis! Mas com vigoroso sentido de direção./ De Braz Cubas, o personagem, não me aproximo. Ele viajou à roda da vida, diz Machado; eu não cheguei a tanto:/ a vida é muito extensa, muito profunda, obscura, misteriosa./ Fiquei no meu lugar -com a vida comprometida que há nele".
"Porto Alegre Revisitada" traz recados do mundo e revela uma dicção cultivada. Trata-se de um livro organizado em torno de visões. E, segundo João-Francisco Ferreira, tanto "no detalhe, como na extensão, a cidade é a substância dessas visões". Desde o sugestivo "Quatro Portas" até "Última Palavra", sentimos a mão firme do autor nos conduzindo pelo seu labirinto de leituras, estações do ano, ruas da cidade. As imagens oscilam entre a epifania do meio-dia ("Na Matriz os ipês estão florindo florindo/ para nunca mais morrer") e a condição humana nas mãos do outono ("L'homme du vingtième: ce temps perdu"); entre os constantes deslocamentos do viajante e o indivíduo sozinho no "scriptorium"; entre as "Memórias Póstumas de Brás Cubas", de Machado, e o "Testamento", de François Villon.
Sinais do tempo
"A Camisa no Varal", de Jamil Damous, reúne três livros e alguns poemas novos. Esse aspecto de reunião permite avaliar o conjunto do trabalho, cujo eixo central é um discurso sobre o tempo. A todo momento esbarramos em alguma mobília da memória que separa a infinita esperança da obra de estréia, "Tempo Turiense e Outros Tempos", do vírus nostálgico que invade os "Novos Poemas".
Nos dois primeiros livros, "Tempo Turiense" e "Alguns Azuis do Mar da Barra", Jamil vê o mundo com as lentes de Ferreira Gullar. O poeta se despede de Turiaçu, interior do Maranhão. Fotografa o quintal das casas e os urubus que sobem aos céus em labaredas, passeia pelas "Três Quadras de São Luís" ou reside na "Domingos Marreiros, 463", em Belém. Instalado no Rio de Janeiro ainda convive com o "Cacho de Bananas", a "Paisagem Vazia", o "Cemitério de São João Batista" tão presentes na obra de Gullar que, mais que influência, atua como tradutor do tempo e da paisagem.
No entanto, Jamil adquire voz própria e salta para dentro de sua biografia. Entre hábito e estranhamento, põe à prova os sentidos do próprio nome (ou nome próprio?) no belo poema "O Nome em Mim" ou no coloquial-irônico "Primeiro de Abril de 1994": "Será que Deus vai chamar/ pelo meu nome: 'Jamil,/ eu só queria brincar,/ foi um primeiro de abril!?'±".
Neste ajuste de contas, o autor redescobre as diferentes cidades, casas e salas em que viveu com seus discos e livros, escutou Caetano, leu Proust e Drummond. Jamil sabe arrancar poesia do cotidiano, das coisas miúdas, de um cigarro ou da cozinha. Outra particularidade é a procura da delicadeza. Mesmo quando entrincheirados pela dimensão trágica da vida -"O portador porta o vírus/ e algumas coisas claras:/ uma camisa amarela, um canivete suíço/ um par de óculos na cara"-, seus versos possuem uma cadência suave, exalam o "perfume da possibilidade".

AS OBRAS
A Camisa no Varal - Jamil Damous. Editora Cejup (travessa Rui Barbosa, 726, Belém, PA, CEP 66053-260, tel. 091/225-0355). 126 págs. R$ 16,00.

Porto Alegre Revisitada - João-Francisco Ferreira. Unidade Editorial (av. Erico Verissimo, 307, Porto Alegre, RS, CEP 90160-181, tel. 051/221-6622). 40 págs. R$ 6,00.

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