São Paulo, domingo, 21 de abril de 1996
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Arqueólogos brigam pela idade dos primeiros passos humanos no Brasil

EDUARDO GÓES NEVES
ESPECIAL PARA A FOLHA

O problema da antiguidade da ocupação pré-histórica da América do Sul é um dos poucos temas de arqueologia brasileira que costuma extravasar os limites da academia e ganhar espaço na mídia.
Jornais e revistas relatam pesquisas, feitas em diferentes partes do Brasil, que estariam modificando o atual conhecimento sobre a antiguidade da ocupação do continente, rompendo a atual barreira de 12 mil anos antes do presente.
No entanto, não existe atualmente na América do Sul um único sítio datado em mais de 12 mil anos antes do presente que seja inquestionavelmente aceito pela comunidade científica brasileira e internacional. Isso se deve em parte ao fato de muitos trabalhos ainda não terem sido ainda plenamente divulgados, o que permitiria um exame crítico das evidências.
O problema maior refere-se, no entanto, ao contexto no qual são feitos esses achados. Na ausência de restos humanos que poderiam ser diretamente datados, existem dúvidas sobre a autoria humana dos artefatos de pedra lascada, das estruturas -concentrações de carvão ou aglomerações de rocha- ou dos supostos restos alimentares -fauna com marcas de corte- encontradas nos sítios.
Evidências
O trabalho de Anna Roosevelt e seus colegas agora publicado pela revista "Science" tem o mérito de não deixar dúvidas sobre o contexto dos achados feitos na caverna da Pedra Pintada, município de Monte Alegre, Estado do Pará.
A publicação é bem ilustrada e as evidências são apresentadas com clareza: não há dúvidas quanto a autoria humana dos artefatos de pedra lascada descobertos nas escavações. Os perfis estratigráficos apresentados indicam que as camadas arqueológicas não foram misturadas, e as datas obtidas são apresentadas em tabelas indicando a proveniência dos materiais datados. As condições de preservação do sítio são muito boas e graças à adoção de métodos cuidadosos de escavação foi possível a recuperação de vestígios orgânicos, o que dá uma idéia sobre a economia das populações que descontinuamente ocuparam a caverna ao longo de 10 mil anos.
A Caverna da Pedra Pintada é agora um dos sítios mais bem datados do Brasil. Apenas para os níveis mais antigos, 56 datas foram obtidas através de diferentes métodos. A congruência entre datas obtidas por métodos independentes afasta a possibilidade de contaminação dos materiais datados.
A datação direta de artefatos cuja autoria humana é inegável e de um grande número de sementes de frutas consumidas pelos moradores pré-históricos da caverna atesta que a Caverna da Pedra Pintada foi de fato ocupada por populações humanas a partir de cerca de 11 mil anos antes do presente. Sendo assim, este é o mais antigo sítio arqueológico firmemente datado da Amazônia (1). Roosevelt mostra também que boa parte das pinturas ainda hoje preservadas nas paredes da caverna foram feitas por seus moradores mais antigos.
Antiguidade
Tais achados não colocam esse sítio como o mais antigo do Brasil, mas contribuem para modificar as hipóteses vigentes sobre a ocupação pré-histórica da Amazônia. A Caverna da Pedra Pintada contém no entanto outros vestígios de igual importância.
Em um artigo publicado no ano passado, Roosevelt indica que fragmentos cerâmicos encontrados na caverna foram diretamente datados em 6.785 anos antes do presente, a mais antiga evidência de fabricação de cerâmica em todo o continente americano (2). Esses dados corroboram os resultados obtidos na escavação, feita também por Roosevelt e seus colegas do Museu Paraense Emílio Goeldi, do sambaqui fluvial de Taperinha, na margem oposta do Amazonas.
Os achados de Pedra Pintada e Taperinha representam mais um episódio na sacudida que Anna Roosevelt vem dando na arqueologia amazônica nos últimos dez anos. Tais sítios já haviam sido identificados no século passado pelos naturalistas Alfred Russel Wallace e Charles Frederick Hartt.
Nos últimos 50 anos, no entanto, os arqueólogos brasileiros e estrangeiros que trabalharam na Amazônia desconsideraram as idéias dos naturalistas do século passado. Esses arqueólogos, liderados por Betty Meggers do Smithsonian Institution, defendem a hipótese de que a Amazônia foi uma área marginal durante a pré-história da América do Sul. A região teria sido ocupada tardiamente e de maneira descontínua por causa de fatores limitantes do meio ambiente. Os trabalhos de Roosevelt no baixo Amazonas colocam uma pá de cal nessa hipótese. Sabe-se agora que a ocupação da Amazônia é bem mais antiga que o anteriormente suposto.
Releitura
Roosevelt teve o mérito de reler os autores do século passado e seguir seus passos para localizar e escavar Taperinha e Pedra Pintada. Sítios tão antigos são geralmente difíceis de serem identificados na Amazônia. As características dos rios da região contribuíram para a destruição de um grande número de sítios ou para o seu enterramento sob dezenas de metros de sedimento. Achados feitos por outros pesquisadores na Serra dos Carajás e na bacia do rio Jamari (Rondônia), datados em cerca de 8.000 anos antes do presente, corroboram a hipótese de que diferentes áreas da Amazônia já eram ocupadas pelo menos desde o início do Holoceno.
As descobertas de Roosevelt em Pedra Pintada trazem também uma importante contribuição para o desenvolvimento teórico da antropologia. Elas indicam que os paleoíndios (3) que ocuparam a caverna tinham uma economia diversificada baseada na exploração de diferentes recursos por meio da caça, pesca e coleta. Tal imagem é diferente do cenário verificado na América do Norte, onde os sítios paleoíndios indicam uma economia especializada na caça de grandes animais, muitos deles hoje extintos.
Finalmente, as evidências de Pedra Pintada colocam em xeque a hipótese recentemente levantada pelos antropólogos norte-americanos Robert Balley e Thomas Headland, segundo a qual seria impossível a ocupação de áreas de floresta tropical úmida por grupos com uma economia baseada unicamente na caça, pesca e coleta.
Sabe-se hoje que os índios da Amazônia exercem, por meio do manejo dos recursos naturais, uma ação transformadora no ambiente em que vivem, recriando continuamente a floresta. Os trabalhos de Roosevelt indicam que essa ação transformadora remonta a milhares de anos antes do presente. Fica cada vez mais claro então que a Floresta Amazônica não é apenas patrimônio ecológico, mas também patrimônio histórico, resultado da ação humana ao longo de milhares de anos.

NOTAS
1.O arqueólogo gaúcho Eurico Miller obteve datas de até 14,7 mil anos para o sítio do Abrigo do Sol, localizado nos contrafortes da chapada dos Parecis, norte do Estado do Mato Grosso, mas os resultados dessa pesquisa não foram ainda completamente publicados.
2.A. C. Roosevelt. "Early Pottery in the Amazon: Twenty Years of Scholarly Obscurity". In: "The Emergence of Pottery. Technology and Innovation in Ancient Societies", William Barnett e John Hoopes, Smithsonian Institution Press, 1995.
3.Paleoíndio é o termo usado em arqueologia americana para se designar os primeiros habitantes do continente, desde as primeiras ocupações até o final do Pleistoceno há cerca de 10.000-12.000 anos antes do presente.

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