São Paulo, domingo, 21 de abril de 1996 |
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Uma nação de espertos Bandido vira herói no país que cultua a vantagem RICARDO GOLDENBERG
O verdadeiramente notável é o modo como este funcionário argumenta sua refutação: o outro seria otário por ter pago. Como se a suposta ingenuidade de um livrasse a cara do outro. Também na história de Pareja, ele pegou o bobo na casca do ovo (só a polícia?) e na hora virou nosso herói. O nome do jogo é: "Encontre o cretino e fique de bem com a vida". Curiosa concepção de um mundo que se divide em espertos e otários -pressupondo-se que os trouxas são (ou deveriam ser) sempre os outros. Esta concepção tem, entre nós, força de lei, a "lei de Gerson". É bem conhecido que se trata do princípio postulado por este filósofo não-acadêmico da brasilidade, que também joga futebol, constantemente citado, e que se enuncia: "Levar vantagem em tudo". Como toda lei que se preze, a de Gerson é universal, o que nos coloca perante um pequeno problema de lógica: se todos somos malandros, os otários onde estão? Podemos imaginar uma sociedade de espertos. Por que não? Acaso os antigos gregos não educavam seus filhos na perspectiva de uma sociedade de senhores? Sim, mas... a sua era uma escravocracia. Que acontece depois que a Declaração Universal dos Direitos do Homem postula que somos todos iguais? "Levar vantagem em tudo" é a corrupção concebida como norma, não como fato. Não é a alternativa singular de um canalha, mas o dever de todos que queiram ser ganhadores. E quem não quer? Stanislaw Ponte Preta propôs, com fina ironia, uma máxima que dá conta do paradoxo: "Restabeleça-se a moralidade ou então locupletemo-nos todos". Arremedo farsesco de imperativo kantiano, este "locupletemo-nos todos" é a máxima condizente com a lei de Gerson. Demonstra que, a menos que instituamos uma casta de imbecis separada da cidadania malandra, um apartheid dos tolos, os espertos de hoje serão os otários de amanhã, e vice-versa. Não creio que se deva condenar o "gersonismo" em nome de uma moral qualquer, racional ou não. O problema da lei de Gerson é que nos condena a ficar reduzidos a nossos respectivos Eus, sem qualquer outra determinação. Eu, e eu apenas, posso levar vantagem em tudo. Entende-se: à custa de algum outro. (Os psicanalistas, esses seres obsoletos, ainda acreditam que o preço e o valor de um ser humano estão mais do lado do desejo inconsciente, pessoal e intransferível e não negociável -qualquer tentativa de negociá-lo se paga com um sintoma-, do que do lado do Eu, bem de troca por excelência). Que acontece, porém, quando chegamos à conclusão de que somos todos mercadoria? Vendemos nossos Eus pelo que imaginamos que valem? Ou entramos numa igreja qualquer, para dar a nossa vida ares de transcendência? Buzz Lightyear cai na melancolia, quando descobre que não passa de uma unidade de brinquedo fabricado em série, ele, que acreditava ter a missão de salvar o universo! Estou falando do astronauta do filme "Toy Story". Cai na melancolia, então, menos pela "falta de sentido da vida" -a moral do filme termina sendo que a alegria de um menino pode valer como missão que justifica a existência-, que pela descoberta de ser um a mais numa série indefinida. A crença de que os otários são sempre os outros não será abalada tão cedo, com a promoção única e incessante dos valores relativos ao Eu. Mas, enfim, no dia em que começarmos a suspeitar (um de cada vez; não há soluções coletivas para isto) que os otários talvez não sejam os outros, saberemos dispensar alguns dos heróis que chamamos para continuar a acreditar em nossa fama de maus. Heróis que realizam, em nosso nome, as transgressões que nos contentamos em sonhar... como bons otários. Texto Anterior: Coluna Joyce Pascowitch Próximo Texto: Marginais, nunca mais Índice |
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