São Paulo, domingo, 21 de abril de 1996
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Marginais, nunca mais

Pareja mostra que não há mais foras-da-lei no Brasil

MARIA RITA KEHL
ESPECIAL PARA A FOLHA

Intelectuais da velha tradição de esquerda (a nova, se existe, anda bem menos romântica) adoravam um bom bandido. A exemplo de Sartre com Genet, também no Brasil gente bem-comportada, que passa a vida exercendo a discreta atividade de pensar, costumava investir algumas vãs esperanças nos poucos criminosos alfabetizados, de cor branca e bons dentes que aparecem por aqui. Digo "poucos" na categoria dos criminosos comuns, claro. Entre os mandantes de grandes matanças e saqueadores de dinheiro público quase só temos gente alfabetizada, branca e com todos os dentes inteiros.
Mas não é com essa gente que sonham os intelectuais -seus ídolos são os "drop-outs" da classe média que por azar, por vício ou por gosto abandonaram perspectivas de emprego e família e caíram nas emoções da marginalidade. Destes, os intelectuais sempre esperaram que realizassem (por eles) o sonho de fazer da vida uma aventura perigosa, mas que valesse à pena. O marginal e o boêmio eram símbolos de resistência contra a mediocridade pequeno-burguesa.
"Seja marginal, seja herói", escreveu Hélio Oiticica homenageando o famoso "Cara de Cavalo" nos anos 60 -que por sinal não era um moço de classe média. A identificação entre a marginalidade do artista, do intelectual de esquerda e do criminoso comum passava, no período em que o Brasil ainda estava tentando entrar comportadamente no capitalismo industrial, pela desadaptação desses três tipos em relação ao bom-mocismo burguês vigente, defendido, pelo menos nas aparências, pelos que mandavam no jogo: os políticos, a Igreja, os abonados do campo e da cidade.
Em tempos de Leonardo Pareja, a tentativa de inventar um novo herói ficou no mínimo patética: não existem mais marginais no Brasil. O moço carismático e mais ou menos bem informado que liderou a rebelião no presídio de Goiânia pode representar, no máximo, os ideais sexuais de uma juventude de mauricinhos e patricinhas que vivem a vida chata dos shoppings e condomínios em que a classe média se encarcerou em busca deste valor máximo contemporâneo -a segurança. Que Pareja tenha conduzido 40 detentos e nove reféns -em segurança!- para fora de um presídio subumano poderia fazer dele o ídolo de rapazes e moças que tiveram suas expectativas, desde a adolescência, espremidas até o limite da pobreza mental que pauta nosso liberalismo tardio.
Pareja poderia ser um libertador do imaginário, o Robin Hood que roubaria dos noticiários de televisão o cinismo e a chatice dos discursos presidenciais para devolver ao povo algumas moedas de audácia, de solidariedade e de verdade pura. Poderia derrubar os muros de estreiteza mental em que se comprimem milhões de brasileiros de classe média sonhando com celulares, tênis de grife e carros importados, se não fossem exatamente esses seus pobres sonhos de pseudomarginal: um celular, roupas de grife, carros importados.
Não existem mais marginais no Brasil. Os traficantes da Rocinha e do Dona Marta, os colegas de cela de Leonardo Pareja, os anões do orçamento e as peruetes que "trabalhavam" com Rosane Collor na LBA, os fraudadores do INSS e os banqueiros que Fernando Henrique vai ajudar a tirar do buraco que eles mesmos fizeram por cavar, os usineiros do Nordeste, os matadores de sem-terra, os deputados e senadores que vendem publicamente seus votos, os exterminadores da Candelária e da periferia de São Paulo, os policiais que formam filiais do Esquadrão da Morte por aí, enfim -a lista é longa- estão todos, senão na legalidade, na normalidade.
Sua inadaptação, quando existe, é circunstancial -questão de tempo. O importante é que comungam o mesmo credo, vivem dentro da norma: "Eu quero o meu". Todos se reconhecem na pressa, na sofreguidão com que Pareja largou sua vidinha de analista de sistemas tentando encurtar o caminho que leva ao celular, à grife, ao carrão e às telas de tevê.
Se existem marginais hoje no Brasil, talvez sejam gente sem charme e sem carisma. Como os professores da rede pública, que continuam ensinando coisas com que ninguém mais se importa, a troco de salário nenhum. Como esses homens que puxam pelas ruas carroças com jornal velho, num simulacro de trabalho digno com que, por algum motivo obscuro, eles preferem se identificar. De marginais-trabalhadores o Brasil ainda está cheio: mas estes não têm o sex appeal dos bandidos, e vão morrer anônimos sem ter tido direito a seus 15 minutos de fama, digo, de cidadania.

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