São Paulo, domingo, 21 de abril de 1996
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Brasileiro primitivo veio pela praia

PATRICIA DECIA
DE NOVA YORK

Os primeiros ocupantes do que viria a ser o Brasil podem ter chegado pela praia, mas não pelo mesmo oceano pelo qual veio Cabral.
Os paleoíndios, os colonizadores que vieram dar na América do Sul, devem ter viajado pela costa do oceano Pacífico, vindos da América do Norte há mais de 12 mil anos.
Quem sustenta a tese é a arqueóloga norte-americana Anna Roosevelt, professora da Universidade de Illinois em Chicago (EUA). Num artigo que foi capa da revista "Science", uma das duas publicações científicas mais importantes do planeta, Roosevelt e pesquisadores brasileiros divulgaram a descoberta de uma povoação de 12 mil anos no meio da Amazônia.
O estudo, segundo a cientista americana, altera o entendimento da forma e do ritmo da ocupação do continente americano.
A teoria tradicional (veja quadro abaixo) sobre a ocupação pré-histórica da América e do Brasil sustenta que a colonização do continente se deu através de uma lenta migração. Ela teria começado no extremo leste da Ásia, há cerca de 50 mil anos, quando o continente era então ligado ao norte da América -ao Alasca. Daí, grupos primitivos norte-americanos, com armas e bagagens, teriam se deslocado para o sul.
Segundo Roosevelt, diferentemente do que afirma a teoria norte-americana, um segundo grupo de paleoíndios teria descido pelo litoral da América do Norte, povoando muito mais rapidamente a América do Sul.
Agora, ela pretende continuar as investigações fazendo escavações sob as águas do rio Tapajós. O objetivo é encontrar os esqueletos dos paleoíndios que viveram na região. A seguir, os principais trechos da entrevista concedida à Folha.
*
Folha - A senhora acredita que seu estudo seja a descrição e a datação mais precisa de uma população pré-histórica no Brasil?
Anna Roosevelt - Acho que provavelmente é a mais definitiva exploração de um sítio daquele período particular. O que fiz foi tentar ser muito cuidadosa sobre qual era a datação e qual era a cultura. Eu já havia reconhecido que haviam várias culturas desse período no Brasil. Mas, por várias razões, elas ainda não tinham sido aceitas mundialmente.
Folha - Qual é sua opinião sobre as datações de 48 mil anos?
Roosevelt - No meu artigo, sustento que as evidências de uma datação de tanto tempo são incertas. Na verdade, falo de outras populações de mais de 11 mil anos. O que aconteceu conosco é que as pessoas entraram num debate e as opiniões se polarizaram: ou sustentam que são populações de 50 mil, 40 mil anos, ou que não havia nada na América do Sul antes de 11 mil anos atrás. O que mostro é que, na verdade, deve ter havido algo no meio.
Folha - Na sua opinião, a descoberta muda a visão da história da ocupação pré-histórica da América e do Brasil?
Roosevelt - Acredito que essa descoberta mostra uma imagem diferente da sustentada pelos especialistas norte-americanos em paleoíndios. Na verdade, é mais parecida com a formada pelos arqueólogos sul-americanos. Ou seja, houve várias culturas diferentes que se adaptaram a diferentes habitats. A imagem norte-americana diz que os paleoíndios vieram do estreito de Bering pelo centro da América do Norte e desceram pelos Andes procurando pelo habitat aberto de clima temperado, caçando os grandes animais terrestres. Minha pesquisa, se considerada com outras como a de Niède Guidon e a de Maria Beltrão, mostra que existiram culturas regionais, algumas delas altamente desenvolvidas e muito diferentes das culturas norte-americanas do período. Folha - É possível então formular uma nova teoria para a ocupação da América?
Roosevelt - Acredito que ocorreram ao mesmo tempo vários deslocamentos entre as Américas. Acredito que até agora negligenciamos a procura de paleoíndios no litoral, pois a cultura que encontrei parece ser adaptada a viajar por água. Eles pescavam peixes muitos grandes, como o pirarucu, e deveriam usar barcos. Pontas de pedra foram encontradas na ilha de Cutijuba, na baía de Marajó (Pará), um local que não se pode alcançar simplesmente nadando. Os ancestrais dos nossos paleoíndios provavelmente vieram pela costa da América do Norte e estavam adaptados a um habitat que incluía a pesca e o uso de barcos.
Folha - Por que a senhora decidiu escavar Pedra Pintada?
Roosevelt - Um dos aspectos foi a heterogeneidade biológica. É um local onde há muita diversidade de solo e vegetação. E há muitos recursos para humanos: peixes, pássaros que vivem dos peixes, árvores frutíferas. Pareceu-me que, em termos de recursos, era um bom lugar para os paleoíndios. Outro aspecto é que encontrei a maioria dos sítios que escavei por meio de antigos arquivos, pesquisando os artefatos das coleções de museus e nos livros. O museu Emílio Goeldi (Belém) tem vários artefatos da região do rio Tapajós, próximo de onde fiz as escavações.
Folha - Então, antes de conhecer a caverna, a sra. já tinha interesse em pesquisá-la?
Roosevelt - Sim, pois já havia lido todas as fontes e havia visto as coleções dos museus. Sabia que Wallace havia visto lindas pinturas na caverna, que já haviam sido publicados desenhos da caverna e que o Goeldi tinha pontas de flecha encontradas na região de Santarém. Nós tínhamos as pontas de flecha, o conhecimento dos recursos da região e eu já havia encontrado a Taperinha, onde paleoíndios viveram há 8.000 anos. Na Amazônia, desde 10 mil anos, houve uma grande mudança na paisagem -os sinais humanos muito antigos não são fáceis de se encontrar, por terem sido removidos pela erosão ou cobertos pela sedimentação. Então como encontrar paleoíndios? Pareceu-me que uma caverna seria um bom lugar. Nós já sabíamos que o homem pré-histórico estava nas cavernas e ela teria protegido os depósitos da erosão e da sedimentação.
Folha - A senhora acha que as populações da Amazônia migraram para o Nordeste?
Roosevelt - Na verdade não. Acho que há uma relação remota. Acredito que as culturas da Amazônia são diferentes, principalmente por causa da ênfase no grandes peixes, na água do rio e ainda também por causa do habitat tropical úmido. O Nordeste brasileiro é muito mais seco. Eles não são idênticos ao povo da Amazônia, mas apresentam algumas similaridades. Por exemplo, acho que a arte rupestre mostra uma ligação, mas não tenho como saber quem veio de onde.
Folha - A sra. acha que há outros sítios mais antigos na região?
Roosevelt - É possível, mas não acho que seja muito evidente pois a natureza da cultura que encontrei se mostra como algo que apareceu de repente. É algo muito elaborado, com um estilo muito particular. Não vi nenhuma evidência do que Guidon transcreveu, que é do primitivo para o complexo. Encontrei uma cultura muito complexa desde o início. Isso significa que ela chegou ali, não se desenvolveu ali. Mas não desencorajaria ninguém a fazer pesquisas procurando sítios mais antigos.
Folha - A sra. acha que é possível achar ossos humanos na região ?
Anna Roosevelt - Achamos plantas, frutas carbonizadas e ossos de peixes e de animais carbonizados. Acho que se os esqueletos estivessem enterrados na caverna, nós teríamos encontrado. No entanto, o interior da caverna não é o melhor lugar para eles estarem enterrados. Mas daqui em diante deveremos procurar debaixo da água do Amazonas.
Folha - É possível?
Roosevelt - São locais muitos profundos, o que impossibilita a escavação em mergulhos. A solução é usar equipamentos especiais, já utilizados por oceanógrafos. Na verdade, nós já estamos começando um projeto nesse sentido com colegas de Manaus e arqueólogos da Universidade do Amazonas. Estamos na fase de planejamento da pesquisa e tentando conseguir financiamento para trabalhar com o Instituto Oceanográfico Scripps, da Califórnia. Tentaremos encontrar alguns sítios ao longo do rio, talvez no ano que vem. Afinal os paleoíndios trouxeram peixes do rio e com certeza há sinais deles por lá.
Folha - Há outras implicações da pesquisa?
Roosevelt - Sim. A floresta tropical também serve de habitat para o desenvolvimento humano. E isso nos faz voltar o olhar para a África, onde as culturas humanas teriam surgido. Lá também as florestas tropicais devem ter servido como focos de culturas desenvolvidas. Até agora, as pesquisas se concentraram na savana. A paleontologia e a arqueologia talvez tenham se enganado ao deixar a floresta de lado.

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