São Paulo, domingo, 21 de abril de 1996
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A mancha do crime no mundo ideal de Harvard

CARLOS EDUARDO LINS DA SILVA
DE WASHINGTON

"Aquele que entra numa universidade caminha em solo sagrado" (James Bryant Conant, químico, reitor da Universidade de Harvard entre 1933 e 1953, embaixador dos EUA em Bonn entre 1955 e 1957, em discurso na comemoração do tricentenário de Harvard em 1936).
Em seus 360 anos de gloriosa existência, a Universidade de Harvard nunca teve mês pior para sua reputação de forjadora de benfeitores da humanidade do que este de abril de 1996. A imagem de dois de seus ilustres graduados com mãos e pés acorrentados apareceu em jornais, revistas e emissoras de TV de todo o mundo.
O matemático Theodore John Kaczynski (turma de 1962) é acusado de ser o terrorista Unabomber, responsável pela morte de três pessoas e ferimentos em 23 em uma série de atentados por cartas-bombas ao longo de 18 anos.
O médico Daniel Carleton Gajdusek (turma de 1946) é suspeito de ter explorado sexualmente 54 meninos que ele trouxe para os EUA de suas viagens científicas a ilhas do Pacífico sul.
O noticiário está cheio de registros de criminosos psicopatas que assassinam em série e de pedófilos que abusam de crianças. O que torna os casos Kaczynski e Gajdusek particularmente perturbadores é a sua vinculação com uma entidade que nos EUA (como no Brasil) é tida pelo conjunto da população como uma purificadora de almas: a universidade.
É bem verdade que o número de pessoas ainda apegadas à noção de que a educação superior confere invulnerabilidade a seus portadores decresce a cada ano, em parte porque o privilégio deixou de ser de poucos.
Há 12,2 milhões de norte-americanos em instituições universitárias este ano. É de se supor que uma boa proporção deles cedo ou tarde venha a roubar, matar, estuprar, perverter. Mas só 2.165 pessoas foram admitidas para estudar em Harvard neste ano acadêmico, dos 13.865 que se inscreveram, todos muito bem qualificados.
Enfim, Harvard pode se gabar (como o faz com alarde em suas cartas para obter donativos) de estar "numa posição única para fazer deste mundo um lugar melhor para se viver".
Os dois piores embaraços anteriores causados por ex-alunos à orgulhosa instituição, cujo nome se deve ao pastor puritano inglês John Harvard, que viabilizou sua fundação em 1636 ao doar à recém-criada faculdade a fortuna de 1.200 libras esterlinas, foram mínimos comparados aos atuais.
Na década de 1930, o químico John Aloysius Bailey (turma de 1907) matou alguns incautos que compraram seu medicamento Radithor, baseado em água radioativa, oferecido ao público como "poderoso afrodisíaco".
No ano passado, os economistas Charles Les e David Sword (turma de 1993) foram condenados por terem se apropriado de US$ 126 mil de uma entidade de ajuda a crianças com câncer que os dois dirigiam em Boston.
Kaczyinski e Gajdusek, se culpados, envergonharão muito mais o nome da Universidade de Harvard, a mais antiga dos EUA e considerada a melhor por todas as pesquisas independentes que se fazem anualmente no país.
Por enquanto, a direção de Harvard ignora os escândalos com olímpico silêncio. O departamento de relações públicas desconhece solenemente telefonemas de jornalistas que pedem comentários oficiais.
Talvez por inveja e despeito, no entanto, não-harvardianos se esbaldam. O iconoclasta programa de TV "Saturday Night Live", por exemplo, criou hilariante quadro em que a reunião anual dos ex-alunos de Harvard passou a ter Ted e Danny como as grandes atrações da festa.
Jornais e programas de rádio estão cheios de gracinhas como sugestões de novos slogans para a universidade: "Orgulhosa de produzir os melhores e mais brilhantes em todos os campos, inclusive o do crime".
Mas, além do humor de gosto duvidoso, os episódios Kaczynski e Gajdusek trazem efeitos sociais graves. Numa época em que o cinismo coletivo já anda tão exacerbado, eles ajudam a colocar lenha na fogueira em que ardem muitos valores até pouco tempo considerados universais.
A crença de que a educação torna as pessoas mais humanas, não menos, tem resistido a séculos de investidas contra a erudição e a ciência.
Alguns desses ataques foram momentaneamente bem-sucedidos. Mas a convicção consensual posterior de que eles criaram ambientes sociais de obscurantismo, atraso e até terror reforçaram a tese de que a educação como um todo e a universidade em particular merecem todos os benefícios.
Em jogo está mais do que o prestígio de Harvard. A instituição universitária como um todo já vem se desgastando há anos por causa de improdutividade, discurso politicamente correto, queda na qualidade do ensino e da pesquisa, critérios de racismo ao avesso para admissão nos corpos docente e discente, rebaixamento dos níveis de avaliação.
Ela pode não precisar de muito mais do que um empurrão para descer até o fim a ladeira do descrédito. É evidente que terroristas e maníacos sexuais são exceções entre PhDs. Mas os escândalos Kaczynski e Gajdusek podem ajudar a entornar o caldo da desconfiança pública na universidade.

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