São Paulo, domingo, 5 de maio de 1996
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Conversa na sala

MARCOS AUGUSTO GONÇALVES
EDITOR DE DOMINGO

Estamos todos numa sala onde cabem comodamente 20 pessoas. Algumas entram, outras saem, o movimento é intermitente.
Um dos presentes, de nome Candonga, tenta puxar conversa com uma escorregadia Lili. Quer saber do que ela gosta e o que ela faz.
A seu lado, um personagem que se identifica como Canabis procura demonstrar inteligência, levantando temas sociais e culturais. Esforça-se e consegue lançar alguma fumaça de polêmica no ar.
Para sua felicidade, encontra interlocutores e segue adiante com suas idéias. Tudo transcorre nesse ritmo aparentemente normal, até que se apresenta uma nova personagem no recinto.
- "Oi pessoal, sou Kiki", anuncia-se, saltitante.
A pergunta vem imediatamente:
-"Kiki de onde?"
-"Ora, de Montparnasse", responde graciosamente.
A graça vale um gélido silêncio para a recém-chegada, que passou alguns minutos apenas presenciando a conversa alheia.
Inconformada com a pouca repercussão de sua figura e com a verborragia de Canabis, Kiki decide atacar:
-"Oi pessoal, que tal se a gente queimasse o Canabis?"
Rebuliço geral. Adesões imediatas. Um certo Mr. X, até então ausente, surge em cena. Diz que é de Recife e que entende do assunto. Lili, até aquele momento discreta, resolve sair aos berros:
-"Basulo, basulo, basulo!"
Impaciente com tanta euforia, Canabis diz que a proposta de Kiki é racista e violenta. - "Não se deve propor a queima de pessoas".
-"Tu tá doidão?", retruca Kiki.
A conversa prossegue animadamente. Mas é tarde, saio da sala, acendo um cigarro e me pergunto: será que Lili e Candonga realmente irão se conhecer? Será que Lili era mesmo uma mulher? Será que Canabis fuma a substância que lhe dá nome?
Não sei, talvez nunca venha a saber, talvez realmente não interesse.
Afinal, a sala em que estava era um cômodo virtual, criado na Internet, para encontros com "tema livre".
Um mundo paralelo numa interlocução tão frenética quanto imaterial, tão aparentemente íntima quanto realmente distante.
Relaxo. Desligo os peixes que nadam na tela do computador. Recosto no travesseiro, abro um livro, sinto o cheiro do papel, percorro a tinta impressa e durmo. Sonho que tenho o mundo ao alcance do meu mouse.

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