São Paulo, domingo, 5 de maio de 1996
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A questão agrária e as relações de poder no país

MARIA DA CONCEIÇÃO TAVARES

Trata-se de um assunto sobre o qual convém manter sereno o ânimo e isenta a retórica, por difícil que pareça, face às atrocidades e ignomínia a ele relacionadas desde sempre e à sua recente intensificação no nosso país. Tentarei, a despeito das memórias e da indignação que os acompanha.
Da perspectiva do pensamento reformista latino-americano dos anos 50 e 60, a reforma agrária era concebida como um processo social inserido em um movimento global de transformação da sociedade e direcionado a três objetivos estratégicos: a ruptura do poder político tradicional (democratização), a redistribuição da riqueza e da renda (justiça social) e a formação do mercado interno (industrialização).
No caso brasileiro, as transformações ocorridas no campo durante as décadas de 60 e 70 -particularmente nas regiões Sul e Sudeste- e o marco político-ideológico que se consolidou a partir do esvaziamento dos projetos de base nacional e popular, conduziram a um progressivo reducionismo na concepção da reforma agrária, que foi redefinida -tanto no nível interno (pelos gestores do novo pacto de poder), como no internacional (pelos organismos multilaterais que assumem progressiva hegemonia neste âmbito)- como um instrumento de "política de terras".
A "revolução agrícola" consumada naquele período "desativou" o significado econômico clássico da reforma (a formação do mercado interno), contribuindo assim para a afirmação da concepção reducionista.
A velocidade e natureza do processo de transformação das bases técnicas e econômicas da agricultura não tiveram, porém, correspondência nos planos da justiça social e da democratização política.
A terra e a riqueza continuaram sendo concentrados por força dos novos interesses agroindustriais, da expansão da fronteira e dos interesses agrários "tradicionais", que se verificam com maior intensidade nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste.
Assim, a "questão" agrária foi sendo empurrada pela "modernidade", pouco se modificando o caráter autoritário e socialmente predatório das relações de poder em todos os níveis.
A terra, apesar da tecnificação da produção em algumas áreas, mantém, por outros mecanismos, notável importância econômica e política, o que tem preservado seu caráter de base do sistema patrimonialista.
Não é por acaso que o valor de mercado da terra tem, em muitas áreas, pouco a ver com a renda capitalizada derivada da produção, sobretudo se levadas em conta as altas taxas de juros que prevaleceram nas últimas duas décadas.
Isso porque o processo de ocupação do território gera rendas de monopólio privado, por meio da apropriação de recursos públicos e diversas formas de articulação/exploração da mão-de-obra e expropriação do seu produto.
A confluência no campo de dois processos -a modernização conservadora da produção e o agravamento dos fatores de exclusão nas áreas tradicionais e de fronteira- tende a tornar crítica a questão da terra.
O deslocamento de importantes contingentes de trabalhadores rurais para a periferia das cidades de pequeno e médio porte disfarça a pressão sobre a terra.
Por outro lado, a crescente importância da população urbana no conjunto do país tende a desviar a atenção de um fato fundamental: a população rural ainda tem uma dimensão absoluta notável, equivalente à dos anos de ouro do reformismo.
Finalmente, a crise do emprego agrícola e urbano tende a agravar a pressão sobre a terra, levando inclusive "cidadãos" sem esperança a se juntarem ao MST.
Existem, portanto, dois conjuntos sociais para os quais a questão da terra constitui, com signos opostos, fator de importância fundamental.
Um deles é formado por aqueles que, detendo o poder político ou o do dinheiro, utilizam a posse ou a propriedade da terra como instrumento de diversas formas de exploração, rentismo e especulação em grande escala, e de reprodução do poder que exercem (inclusive no que diz respeito ao acesso e controle de terras públicas). Em torno a esse grupo heterogêneo de "senhores de terra" articula-se um conjunto de interesses subsidiários -burocracia estatal, judiciário local, comerciantes etc.
O outro grupo social é mais homogêneo, no que diz respeito à carência de poder e de meios de reprodução da sua força de trabalho. É formado pelos trabalhadores sem terra, pequenos produtores deslocados pelo latifúndio para áreas marginais ou premidos pelo capital comercial e financeiro, e migrantes frustrados que sobrevivem a duras penas nas periferias urbanas. A estes podem agregar-se, em um futuro não muito remoto, outras vítimas do processo de ajuste -ex-funcionários públicos, ex-bancários e todos os outros "ex" de menor nível de qualificação, desempregados pelo "reformismo" neoliberal.
Assim, ao contrário do que vem sendo propalado, por ignorância ou má-fé, a importância de uma reforma agrária aumentou muito e a disputa pela terra, se não forem reguladas rapidamente as relações de "domínio" da propriedade rural, levará a enfrentamentos crescentes.
Os caminhos (ou descaminhos) desse enfrentamento são fortemente influenciados pelo peso dos interesses do latifúndio, representados no Congresso principalmente pela Bancada Ruralista, em especial por seus componentes mais radicais na aliança de sustentação do atual governo.
Esse governo, que já editou e reeditou centenas de medidas provisórias, algumas com sérios "arranhões" à Constituição, no caso da legislação do Rito Sumário, desloca a decisão para o Congresso, atribuindo-lhe uma independência não vista nas votações das "reformas constitucionais" e nas decisões de "salvamento" de bancos.
O mínimo a esperar é que tal atitude não indique uma predisposição de continuar se submetendo à indústria das liminares e a questões intermináveis em torno da posse das terras a serem desapropriadas e de seu valor, atrasando a execução da reforma agrária. Já que, com a atual política econômica, não existe política de emprego global possível, pelo menos que o governo aja com rapidez e competência na questão agrária.

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