São Paulo, domingo, 5 de maio de 1996
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O sonho do guerrilheiro em Cuba

5 Glauber desembarca numa Cuba fervilhando. Dezenas de intelectuais, guerrilheiros e viúvas de heróis revolucionários espalhavam-se por Havana.
Brasileiros treinavam para guerrilha sob o comando do comandante Pinheiro, o "Barba Roja", cubano que coordenava o Departamento América.
Dividiam-se em três casas emprestadas às maiores organizações, ALN, VPR e MR-8. A rotina dividia-se em reuniões, treinamentos na mata (formação de pelotão, emboscadas, caminhadas) e ensaio tático de guerrilha urbana.
Estava em pleno andamento a "Campanha dos 10 Milhões", que livraria Cuba da dependência econômica, cujo objetivo era uma safra de 10 milhões de toneladas de açúcar que daria ao país divisas para uma maior autonomia política.
Glauber chegou com uma vasta cabeleira, um poncho e dois projetos: um documentário e uma ficção ("A Idade da Terra"). Alfredo Guevara abriu-lhe as portas do Icaic e ofereceu como assistente um líder estudantil que havia ganho uma bolsa de estudos do Icaic: Marcos Medeiros.
Medeiros fora condenado no Brasil a nove anos de prisão por "atividades subversivas". Viveu na clandestinidade sob a guarda do MR-8 e depois passou para o PCBR. Saiu do Brasil em 1970 pela rota sul.
Chegou a conhecer Glauber em Paris e apresentou o projeto de um filme, "História do Brazyl", inspirado no documentário de quatro horas de Fernando Solanas, cineasta argentino, sobre o peronismo, "La Hora de los Hornos".
Medeiros passou a morar com Glauber, em Havana. Juntos, desenvolveram "História do Brazyl". Glauber mergulha na missão de repensar o Brasil e descobrir o projeto da esquerda armada para o país, aproveitando a presença de vários guerrilheiros, entre eles, Vladimir Palmeira, Lizt Vieira, Fernando Gabeira, Onofre Pinto e Zé Dirceu.
Pediu ao comandante Pinheiro permissão para entrevistar os guerrilheiros, alguns ainda em período de treinamento. Cada organização enviou um representante.
"A conversa dele não tinha começo, meio e fim. Queria saber se havia mesmo força revolucionária no Brasil. Perguntou do movimento estudantil, misturava discursos", lembra Zé Dirceu, ALN.
"Glauber tinha grande admiração pela guerrilha, que aumentou quando chegou em Cuba. Sentia-se um agente internacional, queria se integrar na luta armada. Tinha uma visão romântica, queria fazer grandes tarefas revolucionárias como cinegrafista, filmar sequestro, ações, um combatente com uma câmera na mão. Queria aderir sem perder seu lado cineasta", diz Fernando Gabeira, MR-8.
"Foi uma conversa desordenada, criativa, mas muito tumultuada. Nem era entrevista, já que ele falava mais que entrevistava. Dizia coisas surpreendentes, nem de esquerda, nem de direita. Nunca levei a sério o apoio dele à luta armada. Era retórica com paixão", comenta Lizt Vieira, VPR.
As entrevistas eram no hotel Habana Libre, que cedera uma suíte para Glauber e Medeiros, sob o olhar atento de Daniel Herrera, vulgo "Olaf", agente cubano treinado pela KGB, responsável pelos brasileiros em Cuba.
"Glauber era uma personalidade. Ninguém tomava conta. Eu gostava dos seus cabelos; naquele tempo, ninguém tinha cabelos compridos. Admirava a sua mania de colocar cada sapato de uma cor, sempre andando de ônibus, apesar de ter um carro à disposição. Era sempre reconhecido nas ruas e acenava como um herói latino. Ele mandava no hotel. Todos o adoravam", lembra Herrera.
Glauber tinha Havana a seus pés. Cuba paparicava os intelectuais estrangeiros que apoiavam o regime. Serviam como embaixadores da causa libertária. E Glauber era o intelectual do Terceiro Mundo de maior prestígio internacional.
Quando não tinha o que fazer, Glauber passava pela agência de notícias "Prensa Latina", escrevia textos sobre o Brasil e despachava para o mundo. E logo apaixonou-se por Maria Tereza Sopeña, jornalista que foi entrevistá-lo.
"Fiquei atraída e muito impressionada por ver uma pessoa tão angustiada como Glauber. Não tinha ainda um projeto definitivo", diz Sopeña.
Sopeña se lembra da boa memória de Glauber (sabia de cor trechos de "Os Sertões" e Castro Alves), da disposição para o trabalho (o primeiro a chegar nos sets de filmagem e o último a sair), da rapidez de raciocínio (fez o prólogo de "Grande Sertão: Veredas" para a edição cubana em dez minutos).
Glauber era requisitado para palestras, reuniões e encontros. Muitas vezes aparecia com o poncho e nu por baixo. Quando quebrou a maçaneta da porta de seu quarto, pediu para não consertarem. "No socialismo, não existe propriedade privada", disse.
Sentiu falta de livros sobre o Brasil e pediu permissão para viajar à Europa com Medeiros, onde compraram 2.000 livros. Glauber fez escala em Moscou. Queria se encontrar com Luís Carlos Prestes, líder histórico do PCB. Prestes defendia o fim da luta armada e a união da esquerda em torno de um único projeto, a derrubada do movimento militar, plantando uma semente na cabeça de Glauber que futuramente iria germinar.
A sorveteria Copélia, praça mais frequentada de Havana (em frente ao Habana Libre), ferve dia e noite. É ponto de encontro de Havana, com suas mesas espalhadas sob árvores.
Foi na Copélia que Gabeira cobrou de Glauber o filme sobre a revolução brasileira para fazer finanças e divulgar a luta armada, filme para ser visto por milhões, com atores populares como Jack Palance (no papel de Lamarca), Jane Fonda (no papel de Iara Iavelberg, companheira de Lamarca) e música dos exilados Caetano e Gil.
"Gabeira, você tem Hollywood na cabeça e está me pedindo para fazer justamente o que sempre combati. Você quer meu suicídio", disse Glauber.
Gabeira teria respondido que "você deve se matar como cineasta e renascer como revolucionário". Anos depois, Glauber deu uma entrevista ao "Pasquim" com o título "Gabeira tentou me matar em Havana".

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