São Paulo, domingo, 5 de maio de 1996
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A esquerda sucumbe

6 Havana era uma festa. "Trepava-se muito, o sol sempre a pino, as praias, a boemia, toda a intelectualidade estrangeira nos hotéis, era a capital da vanguarda do mundo", lembra Medeiros. Glauber chegou a ligar para Norma Benguell, que estava em Paris. "Vem pra cá, aqui tem canaviais lindos e liberdade. Aqui pode-se filmar com liberdade", disse.
No 1º de Maio de 72, Arraes apareceu como convidado, em Cuba. Glauber, com Luís Carlos Prestes na cabeça, passou a defender publicamente a união das esquerdas, tese do velho Partidão. Chegou a se reunir com Régis Debray e defendeu o nascimento uma outra forma de luta, que todos, de Jango (presidente João Goulart, deposto em 64) aos mais radicais, deveriam assinar um documento de união das esquerdas.
O próprio Glauber escreveu o documento. Para Debray, o governador de Pernambuco deveria tomar a iniciativa com a primeira assinatura. "Não assino de jeito nenhum", disse Arraes.
Glauber, agora, em militância pela união da esquerda, e o cinema em segundo plano. Não dominava o discurso tradicional. Palmeira o chamava de "poeta", o que o irritava.
Com livre trânsito em Havana, falava coisas como "vão se passar muitas coisas, mas o movimento de renovação do socialismo vai acontecer dentro da União Soviética, pois do Terceiro Mundo só podemos esperar miséria".
Mas Glauber falava quase sozinho. Havia ressentimento entre as organizações. Brizola e Jango, exilados no Uruguai, estavam afastados. Arraes tinha ciúmes de outras lideranças e, no Brasil, a luta amargava derrota atrás de derrota.
Leu sem parar. Conheceu as teorias de geopolítica de Golbery. Passou a dizer publicamente que a ditadura brasileira só cairia com uma ruptura entre os militares e que a esquerda não estava com o discurso correto. Reclamava que as pessoas não conheciam o Brasil e que os quadros que viviam em Cuba não derrubariam o movimento militar.
A safra dos 10 milhões fracassa, e o país desorganiza-se economicamente. Acaba a epopéia libertária. Na situação de caos, há a reaproximação com a União Soviética. O país se vê obrigado a sepultar a Olas, institucionalizar a revolução e restabelecer relações com os PCs da América Latina.
Os brasileiros em Havana entram em luta interna. Os grupos ligados à luta armada se enfraquecem. A ALN racha. Cuba retirando o apoio, a luta torna-se impossível. Muitos desistem.
Glauber volta a se dedicar ao cinema. Recebe a notícia de que o projeto "A Idade da Terra" não seria mais produzido devido à recessão econômica. Ele e Medeiros mergulham na produção do documentário "História do Brazyl", colagem com trechos de 47 filmes brasileiros dos arquivos do Icaic (de "Sinhá Moça" a "Macunaíma"), com a narração de Glauber de um texto de Medeiros.
"Não havia intenção de fazer propaganda política, mas um filme sobre a civilização brasileira, com versões sobre momentos da história do Brasil, narrado em português", diz Medeiros.
Cuba perde o encanto e pouco a pouco reproduz os vícios de uma república burocrática soviética.
Em 1972, Glauber deixa Cuba.
"História do Brazyl" teve o som sincronizado em Paris. O Icaic manda dois representantes para assistirem à primeira exibição, a convite de Medeiros, co-diretor, e Glauber.
Surpreendentemente, Alfredo Guevara desautoriza o filme, tirando o nome do Icaic dos créditos. Segundo Medeiros, "achou uma bagunça ideológica, um documento heterodoxo". Glauber ficou chocado. Censurado pela direita e esquerda. O filme tem 20 anos e nunca foi exibido fora de raras mostras de cinema. "É um filme morto", diz Medeiros.
Desiludido com Cuba, com a intransigência da esquerda e a falta de projetos viáveis, Glauber faz de tudo para ser apresentado a Jango, que, com problemas no coração, passa a ir com frequência à França.
Se no passado Jango fora taxado de covarde por parte da esquerda brasileira, por não ter resistido ao início do movimento militar, voltava a ter prestígio. As teses do confronto armado contra os militares brasileiros revelaram-se incorretas: a luta política era a melhor estratégia. A história tem seu ritmo e tempo.
Jango passou a se reunir, em Paris, com representantes do Partidão. Hospedava-se num hotel nos Champs-Elysées, pagava jantares e noitadas em boates de strip-tease.
Glauber participou de alguns encontros e concluiu que ele e Jango defendiam o mesmo projeto para o Brasil: com a subida ao poder de Geisel, poderiam todos voltar ao país e recomeçar da estaca zero. Jango lembrava a todos que Geisel havia salvo sua vida, em 64, permitindo que ele, Jango, saísse do país.
Mais tarde, Glauber escreveria a peça de teatro "Jango", tragédia não-realista sobre a vida do presidente, concluída um dia depois da morte de Jango.
Em 1974, Glauber dá um depoimento à revista "Visão", anunciando seu apoio ao processo de abertura política do presidente Geisel. A declaração choca a esquerda. Um ano depois, o filme "Claro" (feito em Roma) é mal recebido. "Lamentável que um cineasta como Glauber tenha virado para o próprio umbigo", escreveu o crítico da revista francesa "Le Nouvel Observateur".
Em Paris, o ministro João Paulo dos Reis Velloso, em nome do governo brasileiro, convida Glauber a voltar ao Brasil e compor com o grupo que organizava o ambicioso projeto de uma produtora de cinema estatal, Embrafilme.
Glauber aceita o convite, volta ao Brasil e não desaponta o novo governo, fazendo sua peregrinação em defesa da abertura política.
Em dezembro de 1980, o último encontro entre Guevara e Glauber, em Paris, patrocinado por Itoby Correa. Assim que se viram, Glauber disse: "Puxa, Alfredo, quanto tempo. Você está igualzinho". Alfredo respondeu: "Espero que você também esteja igual".
Glauber falou num amargor profundo durante cinco horas que a esquerda brasileira estava carcomida e que ninguém entendera suas colocações. Guevara mal abriu a boca. Prometeu responder por escrito, depois de ordenar as idéias. A resposta veio depois da morte de Glauber, com uma edição de "Cine Cubano" dedicada ao maior cineasta brasileiro.
Antes de morrer, em agosto de 1981, Glauber, em uma de suas últimas entrevistas, desabafou: "Estudo história do Brasil e tenho vasta informação sobre cultura e política. Não aderi ao governo Geisel porque não disputo o poder, nem me interessa satisfazer a centros de poder. Posso, então, emitir opiniões independentes de conceitos vigentes".
Quinze anos depois de sua morte, poucos ainda o entendem, poucos ainda o conhecem, e por pouco as idéias de um dos maiores pensadores brasileiros não caem no esquecimento. "Glauber foi um ideólogo, fabricava idéias", resume Marcos Medeiros.
Frase de "Terra em Transe":
- A história não se faz com lágrimas.

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