São Paulo, domingo, 5 de maio de 1996
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A tradução como arte da fidelidade

MILAN KUNDERA
ESPECIAL PARA "LE MONDE"

A prática universitária examina a literatura quase exclusivamente sob seu aspecto nacional: de Herman Broch ocupam-se apenas os germanistas, de James Joyce apenas os anglicistas, de Marcel Proust apenas os romanistas.
Sempre achei essa prática um tanto limitada. Como compreender a originalidade de Broch ou de Proust sem partir da problemática supranacional do romance moderno? Se um estudante deseja escrever uma tese sobre Witold Gombrowicz, os professores exigem-lhe o conhecimento da língua polonesa. Graças a esse "nacionalismo" universitário, condenamos todos os estudos gombrowiczianos, ainda que longe da Polônia, a um curioso provincialismo internacionalizado.
A exigência de examinar o autor exclusivamente em sua língua original é expressão de rigor científico ou pedantismo? Quem não leu Kierkegaard em dinamarquês não tem o direito de discutir sua obra? E, no entanto, não é inteiramente absurdo nos perguntar: uma obra literária é plenamente traduzível? Podemos transmitir numa outra língua toda a intenção estética do autor? Eis o desafio. O grande desafio da tradução. Pois a literatura universal existirá somente se a tradução fiel existir.
Ora, costuma-se dizer: a tradução é como as mulheres -ou são fiéis ou são bonitas. Não conheço adágio mais cretino. Pois a tradução é bonita quando é fiel. Talvez objetem que isso é impossível: nenhuma palavra encontra seu equivalente absoluto em outra língua. Sim, evidentemente. "Sehnsucht", a célebre palavra da poesia alemã, não significa nem desejo nem nostalgia, e o tradutor deve inventar o modo mais adequado de verter seu sentido em francês. Mas como o fará? Com uma paráfrase? Com o acréscimo de um adjetivo? Criando um neologismo? A fidelidade de uma tradução não é algo mecânico, mas exige inventividade e criatividade. A fidelidade em tradução é uma arte.
A força de um romancista não reside apenas em sua imaginação, mas também na capacidade de exatidão semântica. Proust, nesse sentido, não é menos exigente que Descartes. Os ingleses e os americanos conhecem seu grande romance sob o título "Remembrance of Things Past". Lembrança de coisas passadas. Alusão ao trigésimo soneto de Shakespeare. Difícil escolher um título mais belo e mais vazio. Pois o título de Proust é a definição precisa de uma situação humana, e as palavras "recherche" (busca), "temps" (tempo) e "perdu" (perdido) são insubstituíveis.
Acabo de descobrir que em alemão "Point de Lendemain" (Sem Amanha), de Vivant Denon, tornou-se "Nur eine Nacht", "Somente uma Noite". Banalidade sentimental em que se nota todo o refinamento do título francês, que transforma um enunciado de coloração trágica num imperativo hedonista. O romance de Broch intitulado "Unschuldigen", ou seja, "Inocentes", ganhou em francês o título "Irresponsables" (Irresponsáveis). O imenso paradoxo de Broch, que fala da culpa dos inocentes, tem seu efeito anulado. Sufoca-se o sentido de uma obra desde a primeira frase, que é seu título.
Recebi outro dia um livro editado em 1989 com o qual fiquei maravilhado. A nova tradução das obras completas de Freud vem acompanhada agora de um volume à parte intitulado "Traduire Freud" (Traduzir Freud), no qual os tradutores explicam seu trabalho e justificam suas escolhas; eles nos oferecem, por exemplo, um "léxico explicativo" de cerca de 60 palavras -chave de Freud que contém: análise semântica da palavra alemã; exame das traduções francesas precedentes; motivos que levaram à nova solução. Disse a mim mesmo: é com essa paixão pela exatidão que se deveria traduzir não apenas as grandes obras eruditas, mas também os grandes romances.
Inúmeras vezes fiquei irritado com traduções traiçoeiras, sem perceber que os responsáveis não são necessariamente os tradutores. Acabo de ler: "Alguns escritores estrangeiros criticam os tradutores franceses por edulcorar a expressão -e portanto também o conteúdo- de suas obras. É preciso que tais escritores saibam que as edulcorações não são forçosamente obra dos tradutores: muitas vezes elas são impostas pelas próprias editoras". Estas são as palavras de Pierre Blanchaud num artigo admirável publicado na revista "L'Atelier du Roman".
Nesse artigo, ele conta a história tão incrível quanto ordinária de sua tradução de Kleist. O editor, exigindo um texto elegante, "bem escrito", de fácil leitura, impôs modificações que o tradutor, fiel ao estilo estranho, áspero, de seu autor, recusou-se a aceitar. Seguiram-se acusações, aborrecimentos, humilhações (para o tradutor, é claro, porque no par tradutor-editor o primeiro sempre é o mais fraco) e, ao final, surgiu uma nova edição de Kleist (feita por um outro), tão legível quanto lamentável, o que Blanchaud demonstra apoiado em exemplos.
E ele resume da seguinte maneira a situação que, como posso constatar, é cada vez mais frequente em todo o mundo: "Assim que o tradutor entregar seu manuscrito, ouvirá que as 'imperfeições' encontradas em seu texto necessitam de uma séria intervenção do revisor (escolhido pelo editor)... Todas essas revisões terão em comum o fato de fazer com que os autores traduzidos falem o que quer que seja... Se suas frases forem longas, serão retalhadas; se forem curtas, serão estendidas. Conjunções serão inutilmente inseridas, ao passo que repetições significativas serão eliminadas... As razões dessa censura, dessa paráfrase selvagem?... A submissão total a um certo estilo chamativo, a uma escrita de supermercado que o editor acredita ser a única capaz de aumentar as vendas do livro".
Eis um texto de importância capital, um apelo urgente à defesa da tradução como arte da fidelidade -arte sem a qual o sonho de Goethe sobre a literatura universal, que torna Proust tão familiar a um islandês quanto a um francês, estaria com seus dias contados.

Tradução de José Marcos Macedo.

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