São Paulo, domingo, 5 de maio de 1996
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A filosofia no mundo da lua

ANTONIO NEGRI
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Quais são os cinco livros de filosofia contemporânea que você levaria para a Lua?" Este é o tema de um jogo em Paris (de onde a Lua é muitas vezes inatingível, mas onde moram pessoas cosmopolitas que se autodefinem filósofos).
Alguns dias atrás, participei desse jogo. Jogo (ou microsondagem) idiota, rico porém no que se refere à situação da filosofia hoje. Torno-me cronista para descrever a discussão. O pessoal não era ruim: dez intelectuais entre homens e mulheres, de culturas e profissões diversas, amigos -mais ou menos- entre eles, brancos e na faixa dos 40. Amostra sociologicamente limitada, mas significativa.
Primeira fase da discussão. Já que se trata de viajar até a Lua, para que vão servir os livros de filosofia?
A discussão elimina qualquer pretensão de que a filosofia (na Lua) tenha uma função de "expert". Os filósofos "experts" (em moral, tecnologia, política, estética, conselhos de todos os gêneros) são os atores chatos da mídia deste mundo -tomara não encontrá-los também na Lua.
A resposta unânime é que somente uma consciência materialista do mundo e do homem -do homem que gerou o ser lunar- interessa ao lunar.
Segunda fase da discussão. Toma-se a decisão de subdividir o tema. Observa-se que na massa filosófica produzida no século 20 existem textos: a) que estabelecem a base de nossa consciência histórico-teórica do tempo, ou seja, encerraram uma tradição milenar do saber do homem no homem e a superaram criando novo paradigma; b) outros textos -de nível inferior- que caracterizaram o presente, antecipando criticamente as decisões; c) por fim textos que se voltam para o futuro da práxis e para a compreensão do século 21 -humano e lunar. É dentro destas categorias, portanto, que a discussão e a escolha deverão ser feitas.
O terceiro momento da discussão é operativo. Vota-se acompanhando o voto da justificativa. Percebemos imediatamente a difícil tarefa que assumimos, embora o acordo, às vezes retalhado, às vezes compacto, surja.
Na primeira categoria triunfa o "Ser e Tempo", de Heidegger. (É uma vitória manca, pelo menos eu entendo assim, na impossibilidade de poder votar em Nietzsche, ou quem sabe Spinoza -que não são desse século-, mas assim emerge o primado da ontologia). O "Tractatus Logico-Philosophicus", de Wittgenstein, segue de perto (ou talvez ganhasse a parada se algum jogador soubesse decidir mais rapidamente entre esse livro e as "Investigações Filosóficas", do mesmo autor).
Dois livros foram escolhidos na primeira jogada: como excluir essas obras da nossa mala? Como não reconhecer nelas exatamente aquilo que procurávamos, ou seja, uma crítica ferrenha da ideologia moderna junto à definição da nova situação ontológica em que estamos submersos? Barquinhos perdidos em uma tradição anulada pelos desastres do século, voltados sem esperança, mas com determinação, para os novos universos -esta é na verdade a herança da história do século 20.
A discussão sobre o segundo grupo de livros nos cria incertezas. Textos que representem o momento que estamos vivendo? Que o anteciparam de forma crítica? Duas duplas de autores se confrontam: de um lado Adorno e Horkheimer, com "Dialética do Esclarecimento", e "Teoria da Ação Comunicativa", de Habermas; e, do outro lado, "La Societé du Spectacle" (A Sociedade do Espetáculo), de Guy Debord, e "Das Passagen-Werk" (As Passagens), de Walter Benjamin (ou qualquer outro livro desse autor).
A discussão é intensa. A obra de Habermas é acima de tudo criticada pela formalidade da sua abordagem e pela forma pesada de argumentar: mas como argumentar que não antecipou nosso momento? Quanto aos fragmentos de Benjamin, não são ao mesmo tempo sociológicos e delirantes? Ganham Debord e Adorno-Horkheimer, mas fica o gosto da derrota.
E agora o livro que abra o futuro -um e apenas um, porque não podemos levar mais que cinco. Felizmente a unanimidade: "Mil Platôs", de Deleuze-Guattari. Um verdadeiro tratado do materialismo do século 20 e uma cartografia operativa para quem quiser viajar para a Lua e de lá de cima observar a Terra. Por outro lado é um texto que enquanto dissolve a subjetividade moderna, metafísica ou fenomenológica, propõe novos dispositivos de produção de mundos mutáveis e poderosos.
A discussão acabara. Não estava satisfeito. Propus então, até com mau humor, um livro a mais, um belo livro filosófico -um texto produzido 30 séculos atrás, talvez quando a paisagem terrestre era parecida com a lunar, e Behemoth e Leviatã se movimentavam entre a terra e o mar: o "Livro de Jó".
Argumentei: mostra que por meio das mais horríveis experiências, no abandono de qualquer referência teórica, de qualquer valor constituído, o homem pode sobreviver e reproduzir-se. Que a morte do deus é a reapropriação de deus por parte do homem. A Terra e a Lua não são tão distantes, porque na derrota e no sofrimento sempre se pode construir algo de novo. Vamos nos permitir esse livro a mais: ligaria o restante. Mas as pessoas estavam cansadas. Ficou a provocação, mas ninguém votou.

Tradução de Simonetta Persichetti.

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