São Paulo, domingo, 5 de maio de 1996
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Documentos são ontologia do Brasil

IVANA BENTES
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Para se fazer uma construção sólida, a base, a matéria, tem que ser carne morta. Tem que haver alguém morto, um sacrificado. Pode ser um cão, ou um ser humano. Aí, sim, o castelo resiste." Raul Ruiz (em vídeo de Arthur Omar)
Glauber foi um desmistificador. Mas quando entrei, há três anos, naquele cômodo abarrotado de papéis e objetos pessoais que compõem seu acervo, tive a sensação de estar violando a tumba de um faraó. Entrei ali guiada por dona Lúcia Rocha, guardiã da memória do filho, e por um assistente de pesquisa, Samuel Averbug. Trata-se de um acervo precioso para a cultura brasileira atual. Um retrato de Glauber decalcado, estraçalhado, sobre o retrato do Brasil. Cartas, ensaios, romances, peças, poemas, textos biográficos, que analisados em conjunto renovam os estudos sobre sua vida e obra.
Tremi quando li algumas dessas cartas, que agora vamos editar em livro com o apoio do acervo. Não são escandalosas ou imorais. As palavras de um morto já não ferem tanto. São implacáveis, trágicas, melancólicas, como Glauber foi. Uma escrita tortuosa, cheia de correções e grafismos, o papel quase agredido pelas idéias.
Também me impressionou, em mais de 300 cartas consultadas, que vão de 1953 a 1981, o sentido da posteridade e a intimidade do artista com a morte. Dos 14 aos 42 anos, Glauber empreende uma auto-análise sistemática. "Sou um apocalíptico que morrerei cedo", escreve, "às vezes sinto-me louco e absolutamente feliz dentro de uma infinita solidão".
Essa volúpia no aniquilamento e auto-exílio aparece em muitos textos. "Para alguns, Glauber foi mais útil morto do que vivo", sustenta o crítico João Carlos Rodrigues, que se correspondeu com o cineasta. Quando "A Idade da Terra" chegou às telas, em 1980, o cinema buscava o mercado. Glauber radicalizava sua estética, isolando-se. Encarnava a tragédia do subdesenvolvimento sem o glamour das utopias revolucionárias. Ficou fora do mercado. Daí a violência e o desencanto das últimas cartas, em que diz, já doente em Sintra, Portugal, que "forças políticas extracinematográficas desejam meu exílio e mesmo morte".
Mal vestido, desgrenhado, ferino, com problemas financeiros, Glauber agredia seus interlocutores. Ele tinha consciência desse incômodo, do seu lado bufão e marginal. Esse sofrimento é dramatizado, estetizado, como numa carta de 1972, de Paris, para Cacá Diegues, grande amigo e confidente.
O vitalismo de Glauber é atravessado por um profundo sentimento de injustiça e solidão. Visão de morte que se exacerba quando está no exílio, em longos períodos de instabilidade e nomadismo. Nessa carta se vê desprestigiado, dobrado, humilhado: "Me acho ridiculamente reduzido a um pária em Paris, e todos fogem de mim como se eu fosse o perigo, a doença, o pecado. (...) A solidão é terrível e sinto todas as feridas do país estourando no meu corpo e alma, parece até o prenúncio da morte".
Glauber relativiza esse sofrimento, dizendo que é um exagero que só seu psicanalista entenderia, "não curto essa de ser mártir", diz, mas termina por comparar-se a uma figura mitológica, Prometeu, exilado após roubar o fogo.
Glauber/Prometeu é apenas uma de suas máscaras. Como Nietzsche, o pensador das transmutações, Glauber poderia dizer "eu sou todos os nomes da história". Dyonizyo, Kryzto, Corisco, Che, Fidel, Godard, Jango, Eisenstein, Welles, Paulo Martins das Mortes. Personagens que surgem na sua obra como figuras conceituais, duplos e máscaras.
O vitalismo atravessa toda a sua obra. Em "Di", quebra o tabu da morte num ato anarco-modernista, que transforma o velório do pintor Di Cavalcanti em happening cultural. Nesse curta extraordinário, que continua proibido, parece dizer que a morte é uma ilusão, uma invenção da direita. Faz do filme um manifesto estético-metafísico contra a morte.
A repulsa e o fascínio de Glauber pela cultura americana pontuam seus textos. O western o fascinava. Admirava o impulso fundador dessa América que usou o cinema para impor sua mitologia. Queria para nós o mesmo poder de fundação e invenção. Este é o tema de inúmeras cartas do início do Cinema Novo. Daí seu cinema assombrado pela história, pelos mitos fundadores de uma civilização panamericana, "luso-afro-tropical". Glauber parte de um discurso histórico universalizante, a história da Terra (a Terra do Sol, a Terra em Transe, a Idade da Terra) pensada como um fluxo que contém todas as virtualidades. Só desta perspectiva, inseridos no grande fluxo universal, veremos nossa singularidade e potência. Esquizo-ontologia.
Glauber combina história e mitologia, marxismo e psicanálise, aposta no "fluxo desestruturante" do cinema. Sustenta que "não há gozo no espaço capitalista", defende um projeto "nacional universal" de liberação dos canais, "para que o desejo se materialize". De "Barravento" a "A Idade da Terra" fez um mesmo filme barroco multicultural, uma ontologia do Brasil.
O fascínio e o horror pela cultura norte-americana oscilam ao longo dos textos. Numa carta de 76 para a atriz Juliette Berto, com quem viveu em Paris, um Glauber desencantado, que viajou e trabalhou pela América Latina, África, Cuba, Europa, Ásia, fala em "ir para a América" como única saída. O projeto de vida européia, o comunismo ocidental, não interessam mais, diz, tudo fracassou: "A cena da avant-garde histórica é os EUA e depois o Brasil".
Glauber queria chegar à TV. O programa "Abertura", na TV Tupi, pop vanguardista, e a série inédita sobre Antônio das Mortes, com 12 estórias escritas para a TV, são exemplares desse impulso de popularização. Aqui, a mitologia sertaneja mistura-se a clichês do faroeste americano, com cangaceiros louros e mulheres poderosas. Western, drama psicológico, erotismo e política combinam-se num folhetim televisivo singular.
"Quero chegar às massas", diz Glauber, em carta de 1978 para Fabiano Canosa, propondo uma mostra de seus filmes em Nova York e o lançamento de "A Idade da Terra": "Não me interessam mais cineclubistas, críticos, estas frescuras todas. Trata-se de fechar esta miserável década". O fracasso do seu último filme iria desnorteá-lo. Em carta a Celso Amorim, de 1980, lamenta tudo isso e diz que espera ver, um dia, "A Idade da Terra" na TV.
Outro tema recorrente é o fascismo, de direita ou esquerda, sexual ou ideológico e a relação do intelectual com o povo. As pulsões e paranóias anarco-ditatoriais atravessam filmes e textos. Paulo Martins, Porfírio Diaz, Brahms, o Cristo militar, vivem as delícias e contradições do poder. Já o povo, este é chicoteado, espancado, amordaçado, fuzilado.
Pedagogia da violência e um marxismo tropicalizado que transformam beatos, vaqueiros, matadores de aluguel em agentes da revolução. Para Glauber, a violência é "um amor de ação e transformação". Seu marxismo tem algo de sádico e histérico. Para explodir, a revolução tem que ser precedida por um crime ou massacre. Cólera da Terra e dos homens.
Numa carta de 1973 fui encontrar uma surpreendente declaração sobre esse "fascismo esplenderoso". Glauber se define como "um sádico de massas". "O ritual do sangue me fascina", diz, "começo a entender a significação do sadomasoquismo e a infinita ternura que há no crime. Eu tinha um verdadeiro prazer em filmar Antônio das Mortes massacrando beatos, projetava meu inconsciente fascista em cima de miseráveis". Ambiguidades e desejos que vai enxergar em artistas como Hélio Oiticica, rotulado de "explorador sexual de favelados", e Pier Paolo Pasolini, o diretor de "Sal•", "fascinado pelo ritual fascista", segundo Glauber, e que "buscava no Terceiro Mundo um álibi para sua perversão".
A relação do intelectual com o povo é complexa e tortuosa. Em "Terra em Transe", Glauber debocha do político populista que brada: "O sangue das massas é sagrado". O poeta responde: "O sangue não tem importância. Não se muda a história com lágrimas". Glauber oscila entre a mitificação do povo, a revolução dos humilhados e o seu caráter servil e masoquista.
A ambiguidade também marca sua relação com as vanguardas. Glauber amava Godard, mas via no seu cinema tanto a suprema liberdade e invenção como o reflexo de uma Europa "anarco-direitista". Mesma acusação que faz ao udigrudi brasileiro e à vanguarda paulista, "os Campos Brothers de uma Warner literária", que segundo ele só deram contribuição à publicidade.
Glauber nunca se identificou com uma certa cultura urbana brasileira. "Sou um pau de arara", enfatiza em belíssima carta-balanço da sua vida, perto da morte. "Não estudei no Santo Inácio, na PUC, não frequentei o baile do Municipal, nem o Maracanã, nem o Arpoador, nem o Yatch, nem o MAM." Seu cinema é de fundação. Parte do zero, sem citações ou formalismos.
Se Glauber é um precursor do underground brasileiro, com "Câncer", filmado em 1968, é por sua aproximação com a cultura dos morros cariocas. Marginália social e artística que ganha um sentido estético a partir dos anos 70. "Câncer" é uma encruzilhada entre a pedagogia da violência, o impulso sádico-paternalista e o desejo de uma arte que atravessasse as fronteiras de classes. Nele, a classe média artística -Rogério Duarte, Odete Lara, Hélio Oiticica- frequentam a marginália dos morros, sambistas, punguistas, o submundo das delegacias. Discutem com o povo comunismo, sexo, miséria, revolução. Glauber descobre a vanguarda no sertão e no submundo, não na cinemateca. Como se Godard subisse o morro.
Isso não desqualifica os "profissionais da profissão", o cinema de mercado, enfim, a normalidade da indústria cinematográfica, que o próprio Glauber defendeu. A diferença é que ele quis industrializar o gênio. "A Embrafilme foi fundada sobre o mito Glauber Rocha", diz sem modéstia. Paradoxo que ele mesmo não pôde suportar. Basta ler a carta desesperada a Celso Amorim (à pág. 5-5) em que acusa a todos, pede a "desativação lenta e gradual" da Embrafilme e a "desestatização relativa de todo aparato cultural". A carta é profética e de uma lucidez impressionante sobre a cultura no Brasil.

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