São Paulo, domingo, 5 de maio de 1996
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O repórter e os peixes

CARLOS HEITOR CONY

Rio de Janeiro - Uma das regrinhas que nos ensinam na escola, primeiramente, e nas redações, mais tarde, é que o bom texto em português condena a repetição de palavras. No inglês não existe esse problema, mas nas línguas latinas o bom gosto obriga o uso dos sinônimos ou circunlóquios -que, por sinal, é uma das palavras mais feias da língua.
Não sei se é conhecida no resto do Brasil uma história (verídica) que teve como cenário a redação de um jornal popular aqui do Rio. E como personagens o chefe de reportagem e um repórter da pesada, desses que entrevistam até defunto no necrotério e são excelentes farejadores, indispensáveis na hora de investigar os casos mais complicados.
O forte dele era a apuração, não o texto. Cansado de enviar ao copidesque matérias mal-escritas, o chefe dele chamou-o e pediu que, ao escrever os textos, evitasse repetir palavras. Como prova, pegou a reportagem da véspera e mostrou um parágrafo onde havia três vezes a palavra "entusiasmo". E um outro trecho onde o Machado de Assis de plantão cismara de cortar as duas vezes em que o repórter se referira "ao precioso líquido" -já num esforço considerável para evitar a repetição da palavra "água".
No dia seguinte, o repórter foi cobrir uma pancadaria na colônia de pesca da praia do Zumbi, na Ilha do Governador. Tudo começara com uma peixada dominical onde a turma bebeu demais e saiu porrada para tudo o que era lado. Historiando os fatos, o repórter gastou o verbo descrevendo os antecedentes do caso:
"Na madrugada de domingo, Amadeu Lopes de Souza, 49, saiu com amigos para pescar na foz do rio Suruí, no fundo da baía. Conseguiu encher dois enormes samburás com robalos, badejos e uma centena de cocorocas. Chegou em casa pouco antes do meio-dia, chamou a consorte, Conceição Lopes de Souza, 37, mostrou-lhe os peixes e disse: 'Mulher, frite os mesmos!"'

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