São Paulo, domingo, 5 de maio de 1996
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Simples e radical

HERBERT DE SOUZA

Fernando Henrique se elegeu mostrando uma mão com cinco dedos "sociais". Mas a verdade é que a miséria ou continua ou aumenta e nenhuma ação eficaz é realizada para erradicá-la e restabelecer a dignidade e a qualidade de vida do país.
A verdade é que, diante da falta de uma política social que tenha bases em programas eficientes de todos os ministérios (como era planejado pelo próprio governo), o Conselho do Comunidade Solidária fica subdimensionado e sua força de atuação se torna pequena diante do tamanho do desafio que lhe cabe: cuidar sozinho da questão da miséria no Brasil. Fica claro, então, que o problema essencial é a falta de uma decisão política realmente radical, para valer. A questão da miséria foi registrada, mas não foi transformada em prioridade absoluta. Se existe um plano real para o econômico, não há um plano real para o social.
Não existe um Malan ou um Serra da área social. Existem, sim, ministros que cuidam de aspectos e de partes, mas não do todo e não com todos os recursos necessários. Existe dinheiro para as prioridades financeiras e macroeconômicas, mas não existem recursos para as prioridades sociais. Um outro aspecto é o modo como as soluções são encaradas. De modo geral, são complexas, genéricas e inviáveis na própria formulação. Se houvesse uma decisão real de se acabar com a miséria, seria simples, mas teria que ser radical.
Na área da saúde, é preciso adotar em todos os níveis a medicina preventiva e o sistema "médico de família". Concentrar a maior parte dos recursos nisso. A distribuição maciça de alimentos para as faixas de indigência se encarregaria de praticamente eliminar a mortalidade infantil e diminuir drasticamente doenças e internações.
Na educação deve haver uma opção radical pelo ensino básico. Dar total força ao ensino fundamental. Fazer uma democratização real do ensino e da cultura, incluindo milhões de crianças e adultos no sistema de ensino gratuito, universal e de boa qualidade. Não devem ser destruídos os centros de excelência, mas eles seriam ilhas em meio ao continente do ensino básico.
Na geração do emprego: opção clara e radical pelo apoio à micro e à pequena empresa, com bilhões de recursos canalizados para sistemas de profissionalização, capacitação, financiamento e desenvolvimento de uma rede flexível, ágil e criativa de microempresas.
Isso não poderá ser realizado por intermédio do sistema financeiro vigente, uma vez que ele existe para o grande e só sabe ver e conversar com o grande. Seria necessária uma flexibilização real apelando à participação ativa de instituições da sociedade civil que já estão em contato com essa realidade. A Ação da Cidadania pode ter aí um grande papel e tem experiências acumuladas.
Será preciso enfrentar a questão da terra com determinação: a terra deveria ser oferecida a todas as famílias que queiram nela trabalhar. Existem, segundo cálculos do Incra, 180 milhões de hectares disponíveis para a reforma agrária. Isso seria mais do que suficiente. Para se tocar na questão da terra é preciso eliminar os dogmas que a mantêm imobilizada. Terra é para produzir, gerar trabalho e riqueza. Aqui também a opção pela micropropriedade é um caminho, e o resultado seria a geração de milhões de postos de trabalho.
Se essas opções simples fossem tomadas de forma radical, para valer, seriam a única forma de sair do terreno do discurso para o da superação da miséria ainda nesta geração. Essa questão interessa a toda a sociedade, mas não é a que está na pauta da elite brasileira.
Ela fala em educação, mas tem condições de pagar escolas particulares. Fala em saúde, mas frequenta clínicas modernas ou faz tratamento nos Estados Unidos. Fala da terra, mas não permite que se toque no sagrado direito da propriedade. Enfim, nossas elites são suicidas a médio e longo prazo.
Essa também não é a questão prioritária na pauta do governo brasileiro, que tem hoje uma moeda forte e um povo na miséria. Bem que poderia ser diferente, mas isso vai depender mais de nós, aqui embaixo, que dos atuais dirigentes que comandam das alturas.
Contribuí durante mais de um ano com o programa Comunidade Solidária, na função de conselheiro. Agora, continuarei contribuindo, mas só como articulador da Ação da Cidadania e junto à sociedade civil. Continuaremos fazendo a nossa parte e cobrando que o governo também faça a dele, porque soluções existem, mas só se forem simples e radicais.

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