São Paulo, segunda-feira, 13 de maio de 1996
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Dançar na garrafa ou tentar segurar o tchan?

FERNANDO GABEIRA
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Sei que assim procedendo, me exponho ao desprezo de todos vocês. Mas não posso deixar de me deter diante da dança na boca da garrafa e do segura o tchan, dois sucessos do verão que podem se tornar uma interessante nota de pé de página na história da sexualidade brasileira.
Querendo ou não, fomos bombardeados com dezenas de apresentações do segura o tchan, dançado por um grupo baiano. Nele, despontam duas mulheres, uma negra, outra loira. Elas apresentam uma coreografia esquemática, usam shorts e blusas curtas.
Um dos segredos do sucesso da dança é o tríplice movimento, de proteção dos seios, dos órgãos sexuais, e, finalmente, um requebrado que vai quase ao chão. Segura o tchan, amarra o tchan, segura o tchan, tchan, tchan, tchan.
Esse é o momento principal da dança, mas, logo em seguida, mencionam nove meses de espera e balançam os braços como se ninassem um bebê. Alguma coisa aconteceu ali. Seguraram o tchan, amarraram o tchan, e no entanto, estavam esperando a criança nascer.
Desde o princípio senti o grupo baiano como um grupo de dançarinos cristãos, carismáticos, nos transmitindo a visão da igreja católica. Segurar o tchan, amarrar o tchan e, naturalmente, não esquecer de que sexo é feito para a reprodução.
A sensação de que nos traziam a mensagem religiosa me fez pensar melhor na própria forma das mulheres. Corpos elaborados no trabalho físico resplandecem como um triunfo da razão instrumental, um produto sem surpresas de uma determinada quantidade de alongamentos, vitaminas e tempo de aeróbica.
Quem sabe surgirá assim no futuro uma modalidade de pregação evangélica -segura na mão de Deus, irmão, segura o tchan, amarra o tchan, tchan, tchan, tchan?
Já a dança na boca da garrafa aparece como levemente subversiva. A garrafa na sua rigidez mineral está sempre ali, no mesmo lugar. Não tem iniciativa, mobilidade, nem vida, além da que lhe atribui a fantasia da dançarina.
Quem se mexe, quem realiza os passos, dá as voltas, é a mulher. Não pesa sobre ela um suado corpo masculino que geme ritmadamente. Ela é quem se aproxima e se afasta. Ela é quem rodeia. Não se trata apenas de retomar o monopólio da iniciativa. Na boca da garrafa, a dançarina está sempre por cima.
Quem dança, dança para alguém. Aos domingos há concursos na tevê. Em torno da garrafa elas vestem sempre o short curto, mostrando um pedacinho das nádegas e dançam desesperadamente. Cada uma, diante do público, espera os aplausos, a vitória.
Mas no conjunto, o que querem dizer essas centenas de adolescentes e mulheres que dançam em torno da garrafa? O que significam essas frenéticas contrações? Que a energia amorosa vai levantar o Brasil? Que vão resgatar os homens do seu torpor, que estão cada vez mais audaciosas, cada vez mais flexíveis, cada vez mais deliciosamente safadas?
Impossível responder isso. Há alguma coisa a mais, um diálogo. Senão surgiriam festas com apenas algumas mulheres e um engradado de cerveja.
Madonna cantou o sexo que a igreja católica não permite, mas acabou anunciando que vai ninar um bebê com o preparador físico. Quem sabe os baianos que ninam o bebê hoje não reaparecem no próximo ano, com toda a coreografia que mamãe Madonna desprezou? Somos todos de origem cristã e vivemos nos trópicos. O senhor é nosso pastor, nada nos explicará.

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