São Paulo, segunda-feira, 13 de maio de 1996
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O preço da autoridade

JOSIAS DE SOUZA

São Paulo - Em épocas menos globalizadas, nossa condição de país de Terceiro Mundo não chegava a incomodar. Havia Nehru, na Índia, e Tito, na então Iugoslávia. Almejávamos a liderança do bloco dos não alinhados.
Hoje é diferente. Somos apaixonados pelo Primeiro Mundo. Sonhamos com Miami. Para enaltecer algo, dizemos: "Isso é coisa de Primeiro Mundo".
Sintonizado com a nova onda, Maluf trouxe para São Paulo uma dessas "coisas de Primeiro Mundo". O paulistano passou a atar-se ao cinto de segurança do carro com a naturalidade de quem aperta o cinturão da calça ao vestir-se.
Maluf importou também a moda de perseguição aos fumantes. Fez menos sucesso. Mas apareceu como o diabo. E saiu-se com outra: uma campanha de TV em que Jô Soares convida as pessoas a manterem as ruas limpas.
Súbito, descobriu-se que o corpo de Maluf sofre de esquartejamento metafórico: sua cabeça está no Primeiro Mundo, mas sua mão não saiu do Terceiro.
A mão do prefeito é como aquela mão do poema de Augusto dos Anjos, a que afaga e, ao mesmo tempo, apedreja. Assim é a mão de Maluf: sanciona leis com a mesma desenvoltura com que as desrespeita.
Fotografada no instante em que jogava uma embalagem de picolé no chão, a mão de Maluf submeteu-o a grave constrangimento: "Mereço ser multado", reconheceu, após a publicação da cena na primeira página da Folha.
Apesar da confissão, a multa não será paga. Nessa hora, cabeça e mão se reencontram. No Terceiro Mundo, é claro.
Maquinam-se desculpas tolas. E a mão do prefeito, mais descuidada do que boba, passa longe do bolso.
A restauração da autoridade de Maluf custa míseros R$ 789,80, valor da multa. Ou paga, ou perde a moral para cobrar o cumprimento das leis que assina. O sonho do Primeiro Mundo derreteu-se no lixo, nas dobras de uma embalagem amassada de picolé de acerola.

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