São Paulo, segunda-feira, 13 de maio de 1996
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Manhã na lagoa

CARLOS HEITOR CONY

Rio de Janeiro - Faz muito tempo, estava vendo um filme de René Clair em Paris, um filme tão bom, tão bom que de repente decidi sair da sala, andar pelas ruas, beber alguma coisa e só então voltar para ver o resto. Foi um truque para prolongar o prazer, evitar a ejaculação precoce que, no cinema, dura geralmente hora e meia. É pouco quando o prazer é muito.
Ontem, domingo de sol aqui na Lagoa, a manhã estava tão bonita que eu decidi não sair da varanda. Era impossível apelar para um truque ou uma técnica, montar aquela manhã com aquela luz, editar ou pós-editar aquele sol batendo na pedra nua e formidável do Corcovado.
No caso de René Clair, o filme já estava montado e editado, de duas em duas horas o pequenino estúdio da Place Saint Michel o ofereceria aos tarados que o quisessem possuir. Já a manhã de sol de domingo na Lagoa poderia ser repetida mas nunca seria a mesma, eu próprio não seria o mesmo.
Era cedo, a luz era macia, os últimos barcos de regata já se recolhiam às garagens do Flamengo, do Botafogo e do Vasco. E os primeiros barquinhos a vela surgiam das margens, procurando a brisa fácil que levara a noite para dormir o sono do mundo.
Ainda não havia trânsito nas pistas, mas os atletas matinais corriam com seus tênis importados, no ritmo importado pelos especialistas da saúde importada. Olhados aqui da varanda, esses atletas linha-dura até que não precisam de tamanho esforço. Aparentemente, não têm gorduras nem calcificações demais, são diferentes da turma que chega mais tarde, essa sim, banhuda e semi-atrofiada, botando os bofes pela boca, e para piorar, pegando o sol forte e inadequado.
No dia em que for milionário, contratarei meia dúzia de atletas para irem correr lá em baixo por mim. Ficarei aqui em cima, olhando a manhã, o sol e a lagoa, olhando barcos e velas, com a certeza de que, na festa da vida, terei a melhor parte.

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