São Paulo, domingo, 26 de maio de 1996
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Uma geometria impossível

MARIA ERCILIA
DO UNIVERSO ONLINE

É uma surpresa refrescante o livro "Passagens", de Michael Palmer. Tanto pela beleza da edição, quanto pela dicção limpa e sóbria do poeta, herdeira do melhor da poesia de língua inglesa deste século -e não menos pela tradução de Régis Bonvicino. Sem virtuosismos nem adornos, respeitando sempre o original, é uma tradução de poeta.
O motivo mais querido de Palmer é a medida. Está presente em praticamente todos os poemas de "Passagens".
É o tema óbvio de "Como medíamos", em que há um confronto entre medidas antigas e novas, em si um medir do presente em relação ao passado.
Repete-se com mais sutileza em "A Improvisação de Leonardo", sobre o famoso desenho do homem encerrado num círculo. Corpo e abstração geométrica medem-se um contra o outro no arco das frases que vão e vêm.
Não há como não ouvir um eco de Cummings no caprichado arranjo das palavras deste poema. "Leonardo" infelizmente é um dos poemas que mais perde na tradução: seu eixo se apóia sobre os verbos "tell" (que significa primeiro contar, depois distinguir e finalmente dizer), e "draw" (significando primeiro desenhar e depois arrancar). A tradução manteve as variações de significado, mas a reiteração dos verbos se perdeu no português.
Nestes poemas de Palmer o gesto de medir contrasta a dimensão imaginada com as arestas da realidade -mas o imaginado não é um sonho informe e sim uma perfeição geométrica irrealizável. Essa é a natureza da tensão do corpo e do círculo em "Leonardo".
Em "Autobiografia", belo poema que lembra um pouco Wallace Stevens, "as partes são sempre maiores que o todo" e "todos os planos são infinitos, por extensão". Às vezes Palmer toma medidas simplesmente enigmáticas, como em "(viajamos) sempre paralelos ao horizonte" e "simetrias diziam do pão" (em "Poema") e o "zero das ruas e das janelas, um braço na geometria".
A charada das medidas de Palmer parece se resolver num verso de "Autobiografia", em que o poeta/filósofo diz "O mundo é tudo o que está deslocado". O poema desenha uma geometria que apenas pôe em evidência o desconjuntamento da realidade.
Em "Revelações" Palmer descreve elipticamente a degradação da poesia num mundo rebaixado. As palavras no muro ("writing on the wall" é uma expressão que tem mais peso na língua inglesa, significa algo que está à vista de todos, que é impossível de ignorar) "lascadas" ou barateadas, estão à venda e são apenas um espelho de seu tempo. Num epigrama que ecoa Marcial, o poeta diz "Fabius Naso fala pelo rabo/e caga pela boca". A frase brutal, pendurada num muro que atravessa as épocas, sugere que poesia às vezes é obscenidade, às vezes não. Depende do tempo, depende da medida.
(Aqui cabe uma nota sobre a tradução. No primeiro verso de "Revelações" lê-se: "Beneath the writing on the wall/is the writing it was designed/to obscure." Bonvicino traduziu por "Indigno o escrever no muro/é o escrever designado/obscuro." O sentido original parece estar mais próximo de algo como: "Sob o escrito no muro está o escrito que se pretendia ocultar".)

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