São Paulo, domingo, 26 de maio de 1996
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O mito da preguiça brasileira

Elites difundem o preconceito contra quem trabalha muito

MICHAEL KEPP

Meu pai americano, depois de ter assistido a um programa de TV sobre a relação entre a crise americana bancária e a dívida externa dos países da América Latina, virou para mim e perguntou:
"Quando eu devo dinheiro, eu trabalho para pagar as minhas dívidas. Por que não fazem o mesmo aqueles brasileiros preguiçosos?"
Esse preconceito dos países ricos, já enraizado no dito famoso de Charles de Gaulle de que "O Brasil não é um país sério", é também compartilhado pela elite brasileira e alguns dos intelectuais daqui.
Alguns meses atrás, Arnaldo Jabor terminou um dos seus comentários no "Jornal da Globo" sobre os males da nação com esta crítica: "No país tropical, quando as pessoas andam de calção e chinelo, não é só pobreza, é moleza".
Para a elite, a classe que menos trabalha, esse mito camufla o verdadeiro parentesco entre pobreza e nobreza. Tachando a classe trabalhadora de indolente também faz com que o salário, a auto-estima e as reivindicações fiquem em baixa. Essa tática, durante séculos, tem rebaixado os brasileiros mais explorados -desde escravos aos bóias-frias-, criando o "burro de carga" que construiu essa nação.
A imprensa ajuda a difundir esse estereótipo até quando tenta fazer o oposto. Uma capa recente da revista "Veja" que queria redefinir o caráter nacional, se baseou numa pesquisa que perguntou: "O brasileiro está mudando de malandro e preguiçoso para sério e trabalhador?"
"Sim", foi a resposta de 585 dos entrevistados. Mas os resultados também sugerem que uma boa parte do povo já engoliu o preconceito da elite e dos países ricos, pois 42% dos entrevistados se julgaram mais preguiçosos em relação aos outros povos.
Já outras estatísticas do FMI e dos países ricos mostram o contrário: tradicionalmente no Brasil se trabalha mais do que em outros países. Uma década atrás no Brasil, a jornada semanal de trabalho de 48 horas era maior do que no Japão (44h), na Itália (40h), na França (39) e na Inglaterra (37,5h), um dado que não mudou desde então.
Talvez o brasileiro não seja o trabalhador mais motivado do mundo. Mas também diante de um salário mínimo de R$ 112, isso seria um milagre!
Os brasileiros autônomos (cujos salários não são fixos) -como taxistas, vendedores ambulantes, e mesmo aqueles que vão engraxar sapatos em Nova York- são tão motivados quanto os free-lancers de toda parte. Os dólares enviados dos emigrantes de Governador Valadares que foram para os Estados Unidos têm financiado um boom de construção, remodelando o perfil arquitetônico da sua cidade.
Os paulistas são até mais compulsivos no trabalho do que os mineiros, tanto que seu nível de estresse é totalmente incompatível com as necessidades de prazer. É por isso que quando o carioca Bussunda foi perguntado: "Qual foi o lugar mais esquisito onde você fez amor?" Ele respondeu: "São Paulo".
A definição paulista do carioca como "aquele que sabe usufruir sem produzir" é também a piada: "Quais são os quatro tipos do tempo baiano?"... "Devagar, muito devagar, quase parando e Dorival Caymmi", mostram as rivalidades regionais que alimentam o preconceito da preguiça brasileira.
Baianos e cariocas, muito mais do que paulistas, exibem seu lado produtivo durante suas horas livres. Imaginem o tempo e a mão-de-obra necessária para fazer um vatapá ou uma fantasia de uma escola de samba?!
Na América, onde você é o que você faz, uma diversão dessa ordem pode ser considerada uma distração desnecessária, na sua rotina. Essa obsessão americana com o trabalho -além de como se comportar e se vestir no emprego- faz com que profissionais mais descontraídos virem ameaças.
Alguns anos atrás, uma correspondente do "Washington Post" -descrevendo o traje típico que a carioca usa para trabalhar como: "short, blazer abotoado na cintura e sutiã de renda preta"- escreveu admiradamente que as cariocas "se inclinam à nudez" e "são particularmente avessas a adotar regras convencionais da civilização".
Essa marca de puritanismo explica por que americanos são tão críticos com os hábitos trabalhistas brasileiros. A inveja também explica: a inveja que vai desde a forma como a carioca se veste para trabalhar até o seu jeito mais relaxado de ser.
Para os brasileiros, um povo menos objetivo, trabalho não precisa resultar em salário. O mutirão é um exemplo. Eu, como muitos outros, regularmente testemunho essa convergência de suor e solidariedade: é o mesmo suor derramado por brasileiros que gentilmente se oferecem para trocar o pneu furado do meu carro ou outro biscate qualquer e a mesma solidariedade demonstrada quando eles recusam uma gratificação.
Talvez o preconceito do meu pai sobre esse povo não existisse se ele tivesse experimentado um desses gestos de generosidade. Ou talvez desaparecesse se eu pudesse mandar mão-de-obra brasileira para ele lá em St. Louis com a facilidade de uma transferência bancária. Mas este é o maior problema do preconceito: ele não é tão fácil de ser removido quanto um pneu furado.

Michael Kepp é correspondente no Brasil do jornal dominical "The Observer" de Londres e da Fairchild Publications.

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