São Paulo, domingo, 26 de maio de 1996
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A matemática sentimental

MARCELO REZENDE
DA REDAÇÃO

O pensador, matemático, lógico e pacifista Bertrand Russell talvez tenha sido para a comunidade acadêmica da Inglaterra o último gênio -no que essa palavra carrega de maior força e rigor- produzido pela fleuma e a excentricidade de seu país. Uma genialidade, tal como narrada pelo pesquisador Ray Monk na biografia "Bertrand Russell: The Spirit of Solitude", também feita de atribulações amorosas, abandonos e traições.
Desde o último dia 18 de abril, o biógrafo que contou todos os enganos do filósofo Ludwig Wittgenstein em "O Dever do Gênio" (tida como a biografia definitiva do vienense) colocou em evidência todo o mundanismo de um dos maiores pensadores do século. Suspeitas e segredos sobre Bertrand Arthur William Russell, 3º conde Russell, visconde Amberley, vieram à tona por meio de suas cartas e diários.
Foi esse o grande material que serviu de base para Ray Monk contar (no primeiro de três volumes) a metade inicial da vida (1872-1921) do autor de "Principia Matematica", um dos fundamentais trabalhos no campo da lógica neste século. Do ganhador do prêmio Nobel de Literatura de 1950. Do professor que se tornou uma figura pública ao negar, em plena Primeira Guerra Mundial, as armas britânicas e optar pela prisão, por desobediência civil. Do pacifista que sempre preferiu, como muitas vezes declarou, "os profundos sentimentos semi-místicos sobre a beleza" no lugar das balas e dos canhões da Europa.
Mas esse semi-misticismo, nos documentos apresentados por Monk ao longo de todo o livro, converte-se em ações bem mais concretas, tendo invariavelmente o sexo como tema e uma mulher como personagem. A inclinação dos ingleses de vasculhar a vida de nobres, ricos e famosos chega à biografia de Russell. Monk vira a vida do filósofo pelo avesso.
Fatos e confissões
Apenas três dias após o lançamento de "O Espírito da Solidão" (ed. Jonathan Cape, 25 libras), a imprensa britânica já qualificava como "um livro muito bom" o trabalho de Monk, nas palavras de Karl Miller, do jornal dominical "The Observer". Algo que, no reino das resenhas literárias inglesas, pode ser entendido como bem distante de ótimo, impressionante ou colossal.
O biógrafo, na visão dos setores mais conservadores da crítica, não estaria à altura de seu biografado. Curiosamente, o mesmo jornal, uma semana antes, classificara a mesma biografia como monumental. O dilema do "Observer" espelha os próprios sentimentos ambíguos suscitados pela vida de Russell. De um lado, o mestre do pensamento e o paladino do pacifismo. De outro, a vida amorosa movimentada. Duas faces que Monk não hesitou em confundir.
Para explicar a gênese de uma proposição filosófica, Monk a liga diretamente à angústia amorosa em que Russell se encontrava no momento. Há então uma inversão de prioridades. Suas reflexões lógicas dão lugar às fascinações e traições sexuais. Ou parecem se cruzar, com igual importância, em sua mente. "Lado a lado com o desejo de Russell de voltar à filosofia estava a esperança de relatar seu relacionamento com Colette", escreve Monk em uma passagem. As mulheres, o pensamento e o escândalo caminham em igualdade de condições em "The Spirit of Solitude".
Mas há, claro, as descrições de seu percurso pelo mundo universitário. Seu ingresso no Trinity College, em Cambridge, a fim de realizar estudos de matemática em 1890. A opção em se tornar uma espécie de "outsider" do local, membro de um grupo chamado "Os Apóstolos" -uma sociedade que reunia a elite intelectual da faculdade e que aceitava com dificuldade as regras impostas.
Caminhos que o levariam, nos anos 10, em parceria com Alfred North Whitehead, a produzir os volumes de "Principia", qualificado por Monk em "The Spirit of Solitude" como "ilegível". Essa, uma das afirmações que mais irritaram o especialistas de Russell em Cambridge ou Oxford.
Mas o próprio Russell declarou anos depois de seus primeiros estudos que "a matemática pode ser definida como o objeto onde não sabemos do que falamos nem se o que falamos é verdade". Uma afirmação que parece roubada por Monk para retratar seu autor.
Nascido em 1872, um momento em que os britânicos se preparavam para dar adeus à moral vitoriana, desde o início Russell foi marcado pela ausência da figura da mãe, Katherine, que morreu 18 meses depois de seu nascimento, vitimada por disenteria. A idéia de procurar uma mãe perfeita para seus filhos o perseguiria até o fim da vida.
Apenas suas uniões legais foram quatro. Russell se casou pela primeira vez em 1894 com Alys Pearsall Smith. Um casamento que durou até 1921, quando divorciou-se para casar com Dora Black. Teria ainda mais duas mulheres: Patricia Spence (se casaram em 1936, ela próxima dos 20 anos) e Edith Finch, este seu último casamento, realizado em 1953. Quando morreu, aos 98 anos, em 1970, ainda escrevia poemas dedicados a ela.
Entre todas as mulheres "oficiais", várias amantes. A mais séria, lady Ottoline Morrell, sua grande paixão entre os anos de 1911 e 1915. A mulher que se recusou a abandonar o marido para se juntar a ele.
O trecho publicado nesta edição do Mais! mostra Russell cheio de dúvidas sobre se tornar ou não amante de Vivien Eliot, mulher do poeta T.S. Eliot. Vivien, uma mulher com um sério problema fisiológico (uma disfunção hormonal a fazia menstruar várias vezes ao mês), causava repulsa a seu marido. Russell, casado com Pearsall Smith e namorado de lady Ottoline, toma o papel de melhor amigo do casal Eliot.
Nas várias cartas que envia a Ottoline, reconhece a atração de Vivien por ele e entende que Eliot incentiva esse relacionamento. Seu dilema parece não ser moral, mas científico. Russell não se pergunta sobre a imoralidade da situação. Apenas a estuda, aprendendo vividamante com a experiência. O mais típico Bertrand Russell de Ray Monk.

NA INTERNET
O endereço dos arquivos e grupos de estudo de Bertrand Russell na Internet é: http:// www.bmacleod.com/Russell.html ou http://www.cis.macmaster.ca/russdocs.html

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