São Paulo, domingo, 16 de junho de 1996
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A tribo dos rapazes de peito

LUIZ MOTT
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Ministério da Saúde exige da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo apuração rigorosa do assassinato do travesti Brenda Lee" foi a manchete de abertura do segundo mais importante noticiário da televisão brasileira na semana passada.
Brenda Lee, 48 anos, nasceu no sertão nordestino, e por devoção materna aos santos católicos, ou por imposição paterna para marcar o futuro de um novo macho no clã, recebeu na pia batismal três nomes de homem: Cícero Caetano Leonardo. Igual a Kátia Tapete, o travesti vereador de Colônia do Piauí, e de milhares de outros machos-fêmeas nordestinos, para fugir da discriminação e para alívio da família, Cícero migrou para o Sul Maravilha, e junto com os seios de silicone e feminização geral de sua aparência, adotou o mesmo nome de popular cantora de rock dos anos 60.
Nos últimos anos, com a universalização do fenômeno drag queen, os travestis deixaram de ser aqueles exóticos e temidos rapazes de peito, só visíveis altas horas da noite nos antros do prazer e zonas de prostituição, para invadir o sacrossanto aconchego do lar, onde respeitáveis famílias, da vovó aos filhinhos, aprenderam a conviver com Priscilas percorrendo o deserto australiano, ou Saritas dando lição de como ser mulher às adolescentes e coroas televiciadas nas novelas das oito.
Tal invasão dos travestis foi lenta e gradual: no tempo dos militares, Denner, Clodovil e até Ney Latorraca foram censurados na televisão -e o deputado paulista Mantelli Neto, em 1972, chegou a propor projeto de lei "proibindo a apresentação de homossexuais em programas de TV em todo território nacional!"
Com o surgimento da epidemia da Aids, gays, travestis, prostitutas, drogados, ganham uma visibilidade e atenção até então jamais imaginadas: imitando o bom exemplo dos países do Primeiro Mundo, embora com bastante atraso, nossas autoridades médicas finalmente se deram conta de que o sexo era responsável por aproximadamente 70% dos casos de contaminação pelo vírus da Aids, e que embora seja um erro considerar a Aids como "peste gay", mais de 40% das pessoas que já morreram infectadas pelo HIV no Brasil eram homossexuais masculinos ou bissexuais. E dentre estes, sobressaíam os profissionais do sexo -especialmente os "travestis de pista", também chamados de "turma da batalha".
Pesquisas revelam que a grande parte dos clientes dos rapazes de peito são sisudos pais de família, executivos de meia-idade, cidadãos acima de qualquer suspeita, que secretamente, ao voltarem do escritório para suas casas, mantêm relações homoeróticas com as "travas". E detalhe curioso e desconcertante para as mentalidades marcadas pelo maniqueísmo sexista: grande parte dos clientes das "travecas" estão à procura da mulher fálica. Daí o índice crescente de mulheres casadas e soropositivas, com vida sexual exclusiva com seu marido, cujo HIV veio para dentro do lar pela infidelidade desprotegida e irresponsável do marido com profissionais do sexo de ambos os sexos.
Salvador, com uma população de 2,5 milhões de habitantes, tem aproximadamente 200 travestis prostitutos, os quais mantêm uma média de três a quatro transas por noite, o que representa mais ou menos 600 clientes diários, 18 mil por mês, mais de 200 mil por ano. Quantas destas relações homoeróticas foram protegidas pela camisinha?
Afinal, como definir o travesti? Segundo os modernos dicionários de sexologia, travesti é o homem ou mulher que se veste e assume características físicas ou psicossociais culturalmente atribuídas ao sexo oposto. Para efeito desta análise, incluímos como elemento definidor do travesti também a prática do homoerotismo, excluindo portanto desta categoria aquelas pessoas que se auto-identificam como heterossexuais, embora travestindo-se ocasionalmente, seja nos palcos, no Carnaval ou como fantasia erótico-masturbatória.
Segundo a "Enciclopedia of Homosexuality" (Garland Press, New York, 1990), o termo travesti só foi escrito pela primeira vez em 1910, na Alemanha, pelo sexólogo judeu-homossexual Magnus Hirschfeld. No Brasil, travestismo aparece escrito em manuais de sexologia forense quando menos desde 1939, e alguns autores consideram mais apropriado usar "travestido" em vez de travesti.
Os travestis aparecem documentadas na história humana antes mesmo dos tempos bíblicos e, no Brasil, o primeiro homossexual a se travestir de que temos notícia foi o escravo Francisco Manicongo, natural do Reino de Angola, morador na Bahia, que no ano do Senhor de 1591 é denunciado à Inquisição "por recusar vestir roupa de homem".
Segundo seu acusante, nossa primeira traveca era um "quimbanda" -membro de uma numerosa "quadrilha de sodomitas" que já na África se vestiam de mulher e praticavam entre si o "nefando e abominável pecado de Sodomia". O curioso na prisão deste pioneiro travesti afro-baiano é que fazia pista exatamente na mesma área (rua da Ajuda) onde até hoje os travestis continuam batalhando. Quatro séculos de usucapião das mesmas esquinas!
Batalha que continua acirrada, pois, até hoje, apesar da fogueira inquisitorial ter-se apagado desde 1821, os quimbandas contemporâneos continuam a ser vítimas de cruel violência policial. Judeus, candomblezeiros, divorciados, protestantes ganharam status de cidadania: homossexuais e travestis continuam a ser discriminados até mesmo no Programa Nacional de Direitos Humanos, contraditoriamente publicado no Palácio do Planalto no último dia da Abolição da Escravatura.
O travesti mais famoso de nossa história foi a heroína baiana Maria Quitéria, que imitou Santa Joana d'Arc ao se vestir de homem e alistar-se incógnita no Exército, no qual era chamada de soldado Medeiros. Se era lésbica, os documentos não informam. Também no Reino dos Céus entraram humanos travestidos: São Sérgio e São Bacus vestiam roupas femininas quando foram martirizados no Coliseu em Roma.
Depois de Joana d'Arc, o mais famoso travesti na história da França foi Charles Éon, (século 18), embaixador na América do Norte, que se vestia de mulher sem que ninguém desconfiasse que era homem. Nos Estados Unidos, o governador de Nova York lorde Cornbury (1702) também usava roupas femininas, conservando-se até hoje um impressionante quadro a óleo no qual aparece vestido como elegante dama aristocrática.
As origens do travestismo no Brasil devem ser buscadas nos três estoques culturais formadores de nossa nacionalidade: nos documentos da Inquisição, encontramos referência a diversos rapazes portugueses que foram presos em Lisboa por se vestirem e viverem como mulher.
Quando os conquistadores chegaram ao Brasil, os índios homossexuais, que se pintavam e se ornavam como mulheres (já que vivendo nus não tinham como vestir roupa das cunhãs), eram chamados de tibira. Como já adiantamos, muitos africanos, por sua vez, também já se travestiam na Mãe África, tanto que a Inquisição prendeu um nativo do Benin, Antônio, em 1571, que se vestia como mulher, fazendo pista no porto de Lisboa, "e jogava pedra em quem não o chamasse de Vitória".
O preconceito e discriminação ao travestismo na tradição ocidental tem sua fonte na Bíblia. O Livro do Deuteronômio diz: "Não haverá traje de homem na mulher e não vestirá o homem roupas de mulher, porque o Senhor abomina quem assim procede (cap. 22:5).
As leis portuguesas e da igreja repetiram a mesma condenação antiga. No Brasil Colonial, a tentação contra o travestismo parece ter sido tão forte, que as Constituições do Arcebispado da Bahia (1707) prescreviam que se um padre fosse pego vestido com roupa feminina, devia ser deportado para a África e se fosse leigo, que pagasse uma multa de 100 cruzados, devendo ser expulso da Capitania onde vivia.
Desde 1821, quando foi extinta a Inquisição e com a promulgação de nossa primeira Constituição (1823), a sodomia (homossexualidade) deixou de ser crime. Aqui e acolá, podemos encontrar alguns travestis na história do Brasil, seja transformistas no teatro (como o visconde do Rio Branco!), seja fazendo pista no Campo Grande em Salvador ou no Campo de Santana no velho Rio de Janeiro.
Infelizmente, o IBGE ainda não incluiu os gays, lésbicas e travestis no censo demográfico. Na falta de estatísticas nacionais, tomamos como base o Relatório Kinsey, a principal pesquisa sexológica até hoje realizada no mundo, por meio do qual podemos estimar a existência no Brasil de mais de 16 milhões de homossexuais de ambos os sexos. População superior à da Holanda e de todos os judeus espalhados pelo mundo! Avaliação tímida, estimando-se em apenas 10% os brasileiros que são exclusiva ou predominantemente praticantes do homoerotismo.
E os travestis, quantos seriam? Tomando Salvador como amostra -com 2,5 milhões de habitantes e um dos lugares mais gays do país, onde o Candomblé possui inclusive divindades e sacerdotes que se travestem ritualmente- segundo pesquisa de campo do Grupo Gay da Bahia (GGB) e da Associação de Travestis de Salvador (Atras), estima-se que existam nesta cidade por volta de 200 travestis. E no resto do Brasil? Censo empreendido pelo GGB-Atras, concluiu que devem existir no Brasil de 6.000 a 8.000 travestis.
Se acrescentarmos os pequenos Estados, teremos uma estimativa de 7.000 a 8.000 travestis no máximo, incluindo os "exportados" para a Europa, por volta de cem na Itália e outra centena nos demais países. Os travestis representam portanto aproximadamente 0,00005% dos brasileiros, isto é, um travesti em cada 20 mil habitantes. O autor agradece correções e comentários a essas estatísticas.
Tem-se a impressão que os "rapazes de peito" são mais numerosos porque chamam muito mais atenção nas ruas, e atraem maior curiosidade dos meios de comunicação. São mais visíveis também porque são as maiores vítimas da homofobia. Prova disto é que num dossiê do Grupo Gay da Bahia, contendo 1.242 assassinatos de homossexuais no Brasil, entre 1980 e 1995, os rapazes de silicone representam 22% das vítimas.
Se são vítimas fáceis dos machões, policiais e gigolôs, lastimavelmente, a subcultura da pista longe está de ser modelo de urbanidade. Já em 1896, o médico francês Legludic afirmava: "L'indélicatesse est dans les habitudes de tous les prostitués!" (A indelicadeza está nos hábitos de todos os prostituídos!)
Na ótica de boa parte dos praticantes da prostituição, sobretudo os mais marginalizados, a sociedade é composta por dois tipos de gente: os "espertos" e os "otários". "Alguns" michês e travestis vêem geralmente seus clientes homoeróticos como otários em potencial, que serão depenados, roubados, extorquidos, agredidos, se derem qualquer vacilo ou se não se sujeitarem às regras do bas-fonds.
Há travestis que são gente fina, honestos, bons profissionais, que não fazem babado, que discutem o preço antes da transa, que até ensinam os clientes a usar camisinha, ou têm peito suficiente para dirigir uma casa de apoio aos portadores de Aids. Infelizmente há também diversas máfias agindo neste submundo.
Verdade seja dita, no entanto, que o movimento de libertação sexual mundial deve muito aos travestis, pois com sua corajosa opção pela androginia, têm sido verdadeiras pontas-de-lança no questionamento do antagonismo sexual reinante no nosso mundo judaico-cristão! Tanto no início do movimento gay norte-americano (Stonnewall, Nova York, 1969), quanto no do Movimento Brasileiro de Homossexuais (São Paulo, 1978), lá estavam os travestis lado a lado com as "bichas machudas", termo usado por eles para identificar os gays que não se travestem.
É só na década de 90 que os travestis brasileiros também começam a se organizar, primeiro participando da Associação de Gays, Lésbicas e Travestis, e, principalmente, fundando grupos específicos: o Astral (Associação de Travestis e Liberados, RJ), o Esperança, irmanado ao Grupo Dignidade de Curitiba; a Tulipa (Travestis Unidos Lutando Incansavelmente na Prevenção da Aids) cujo carro-chefe, a veterana Adriana, morreu em fevereiro último, e finalmente a mais jovem estrela dos direitos humanos da categoria, o Atras (Associação dos Travestis de Salvador), irmanado ao GGB e dirigido por Keila, dinâmica liderança da categoria.
A fundação destes novos grupos de travestis e a convivência nem sempre fácil com os grupos de gays e lésbicas demonstram, contudo, tímido progresso na luta pela cidadania desta categoria, que apesar de ínfima -todos juntos não chegariam a lotar um pequeno estádio de futebol, mas cujos direitos humanos à diversidade devem ser respeitados.
Com o assassinato da boa samaritana Brenda Lee, os travestis perdem uma de suas estrelas mais humanas. Urge que o poder público mantenha aberta sua casa de apoio e invista mais em programas específicos para resgatar a auto-estima desta buliçosa e desafiante tribo urbana, oferecendo-lhes alternativas profissionais, acesso fácil à prevenção das doenças sexualmente transmissíveis e punição exemplar de seus algozes e assassinos. Afinal, cidadania não tem roupa certa!

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