São Paulo, domingo, 16 de junho de 1996
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Contos de reais

ANTONIO CALLADO
COLUNISTA DA FOLHA

Maria das Dores ficou muito invocada quando viu pela primeira vez, ciscando o chão perto do seu barraco no morro da Rocinha, aquela galinha meio grandona, ou peru pequeno demais, ou lá o que fosse aquele bicho penoso. É a tal história, pensou ela, esse pessoal agora só cria criação trancada, amarrada em máquinas, debaixo de luz elétrica o tempo todo, e pensa que no fim vai dar galinha, frango. É claro que começa a pintar bicho feito esse, gordinho, bom para a panela, mas diferente por fora e vai ver que por dentro também. Quem é que pode saber que bicho é esse, que pelo jeito não nasceu de ovo nenhum?
Na horinha mesmo em que Das Dores pensou na palavra "frango" deu uma dor de lembrança nela, uma fisgada de saudade no estômago. Por que que quando ela era menina pequena era tão comum a mãe dela ter frango na panela e agora, para os filhos dela e do Zé, ela só tinha feijão com arroz, e, quando o Zé conseguia, umas sardinhas que ele trazia da peixaria da Praça 15? O Zé, coitado, era magrelo, contínuo da Bolsa de Valores lá naquela praça barulhenta, mas ganhava tão pouco que ela ganhava mais do que ele lavando roupa e arrumando apartamento de gente folgada no Leblon.
Ih, meu Deus Nosso Senhor, continuou Das Dores, eu estou aqui falando e falando à-toa e de repente esse bicho voa e vai parar aí no barraco do valentão Isaías e entra logo na faca! Brrr! ti-ti-ti-ti, brr! ti-ti-ti-ti! Ah! segurei logo ele. Mansinho. Uai! É galinha, galinhão, mas não tem asa. Só uma amostrinha de nada. Voar só com isso não voa mesmo. Não tem asa nem para chegar no alto de um poleiro. Gente! vejam só as galinhas que essa gente anda inventando na fábrica fechada, sem bicar nada e engolir minhocas, sem ciscar, sem trepada de galo no terreiro, Deus Nosso Senhor não permita. Porque uma coisa eu digo do Zé Bento, ele pode não ter lá esse muque para enfrentar os cafajestes que saem por aí provocando os outros, isso pode: mas o Zé descansado, de fim-de-semana, quando a gente bota as três meninas pra dormir e se mete na cama, ai que pena eu tenho dessa galinhona aí de não ter um Zé-Galo como o meu! E que histórias ele sabe contar para as crianças! Virgem! Sabe tudo, meu Zé, menos dar porrada nos outros. Homem sabido está ali. Nunca teve professor melhor na escola pública do Vidigal até que o Zé teve que abandonar a escola por causa do salário quando o Real acabou. O jeito foi arranjar emprego de contínuo porque senão a gente aqui, mesmo eu trabalhando de faxineira, ia tudo morrer de fome, as meninas, eu e ele.
Galinha sem asa. E como é que ela chegou aqui? Ai, meu Deus! Minha Nossa Senhora do Perpétuo Socorro! Será que isso é mandinga do tal do Exu americano? Porque o Zé garante, ele sabe, ele ouviu de gente entendida lá no escritório do trabalho dele, que foi essa encarnação do diabo das encruzilhadas que tirou o frango da panela da gente, o frango de todo mundo, o frango do tempo do Real. Esse frangão inventado que veio parar aqui, cheio de carne e sem asa, e vai ver que com enxofre na moela, é capaz de ser o frango novo, que eu mal conheço e que agora custa três coroas, preço dum peruzão inteiro no tempo do Real!
Mas vamos com calma. Pelo menos até o Zé chegar preciso guardar esse galinhão aqui, para ver o que é que ele diz, que o Zé sabe tudo. Ai, meu Deus, o doido do galinhão é doido mesmo. Está correndo! E se ele souber voar mesmo sem asa? Se ele for parar no sacana do vizinho Isaías, brigão e ladrão, que vive provocando o Zé? Porque o Exu-Dor-na-Bucha pode tudo, contra o Real como contra Deus Padre Todo-Poderoso!
Neste ponto Maria das Dores segurou o galinhão no colo e começou a chorar, antes de olhar na direção da estátua do Cristo Redentor, que era agora o Cristo Maneta, escarnecido, cuspido, como se o Corcovado tivesse virado de repente o monte Calvário de novo.
Ninguém sabia ao certo o que é que tinha acontecido, só se sabia que aquilo era obra e graça do tal Exu americano. Alguns diziam que, durante aquela tempestade horrenda que tinha havido no Rio, um avião, talvez um helicóptero do Exu tinha dado o tranco e arrancado o braço esquerdo do Cristo Redentor. A verdade é que, quando o Corcovado saiu de trás da cortina de nuvens estendida, o Cristo estava aleijado, estava sem o braço esquerdo, estendendo ao Rio o braço direito só!
No Rio inteiro tinha havido, logo de cara, um grito de horror, de medo. Aquilo era apenas uma primeira parte da luta do Exu estrangeiro contra o Cristo carioca. O próprio Cristo! A prefeitura jurou que sem perda de tempo um braço novo ia substituir o outro e tudo quanto era TV fotografou os operários feito cirurgiões, montados no cangote do Senhor e tentando implantar n'Ele o braço igualzinho ao outro, feito numa marmoraria da rua do cemitério São João Batista. Mas não colava. Não ficava. Três braços, colocados por operários e escultores, foram cravados no santo sovaco mas não resistiram à primeira ventania.
Num gesto de extrema solidariedade e humildade, Oscar Niemeyer, apesar da idade avançada, e apesar de confirmar, antes da escalada, sua fé comunista, subiu intemerato até a axila do Redentor para estudar o melhor meio de transplante e encaixe, com graça e beleza. Mas balançou, entre as nuvens, a cabeça, ao lado da cabeça do Redentor. "Só se o Cristo for ao meu ateliê é que posso dar um jeito nele", disse Oscar, descendo do monumento numa asa-delta, "caso contrário passaremos a viver este horror de uma espécie de saudação nazi-cristã-fascista sobre o Rio, eternamente", sentenciou sombrio.
Nesse dia o Rio inteiro sentiu que o Mal começava a completar, do alto do Corcovado, o horror iniciado com a condenação à morte do Real, com a entronização da coroa, a moeda da decadência, da volta à correção monetária. Era o fim da paz, o reinado da fome e da angústia. Era o epílogo, definitivo, do frango na panela.
*
Quando Zé Bento chegou em casa, com as três meninas que tinha apanhado no Ciep, encontrou Das Dores abraçada com uma galinha. Quando chegou bem perto viu Das Dores pôr no chão a galinha empapada de lágrimas e foi com olhos vermelhos que falou a um Zé estupefato:
- Acho que Exu-Dor-na-Bucha continua a nos enrolar na sua treva, Zé, o Cristo, que já perdeu o braço, tenha piedade de nós.
Zé olhou suspiroso o Corcovado e falou:
- O Senhor me fez à sua imagem e semelhança. Ele detesta briga. Mas acabará vencendo o Mal, você verá.
E só então Zé viu as três meninas que corriam atrás, dando gritos de entusiasmo e alegria, do galinhão que Das Dores abraçava um momento antes, desfeita em lágrimas.
- Que bicho é esse? perguntou.
- Uma galinhona sem asas, disse, voz ainda embargada, Das Dores. Arte dele, do diabo das encruzilhadas. Deve ser um frango encantado e ruim, venenoso.
As três meninas riam, cercando a ave, que parecia positivamente brincar com elas. Zé Bento se aproximou, ficou olhando, observando. Depois se aproximou mais, passou a mão nas penas do galinhão, ainda úmidas de lágrimas, afagou depois as pequeninas asas, que mais pareciam de um sabiá que de um galináceo, e finalmente fitou Das Dores com olhos quase deslumbrados.
- Das Dores, disse Zé, é um doido.
- Um quê?
- Você se lembra da pecinha de teatro que o pessoal representou no colégio, quando eu ainda trabalhava lá, "Alice no País das Maravilhas"?
- Ora, Zé, pela madrugada! A gente aqui morrendo de susto, falando de coisa do demônio, e lá vem você com besteira de peça de "Alice" não sei onde. Pára de contar história, Zé! Isso é coisa séria.
- Das Dores. O doido. O pássaro sem asas, pesando demais para fugir com as pernas, sem asas para fugir voando. Foram os portugueses que descobriram essa ave, quando navegavam pelo mundo inteiro, e resolveram que era doida. Que era "doudo", diziam os portugas. Comeram todos os doudos.
- Como comeram todos se tem esse aí? perguntou Das Dores, rigorosa, racional.
- Ah, minha filha, isso só Deus sabe. Pergunte aí ao Redentor. Eu acho que estamos voltando para trás, minha filha, se minha opinião vale alguma coisa. Estamos voltando ao tempo do descobrimento. Esse galinhão tem 500 anos, Das Dores.
- Cruzes! T'esconjuro, Exu!
- É, mas o galinhão está macio, gordinho. Cadê a faca da cozinha?
- Zé! Você?...
- Claro, uai. Vamos jantar galinha sábado e domingo. E ainda vai dar uma canja. Um canjão, meu bem.
- Canja de 500 anos.
- Canja é canja. Não tem idade. Galinha é galinha. Traz a faca antes que chegue aí uma caravela e os galegos nos roubem o doido, o doudo. Vai! Depressa, mulher! Assa metade, faz a outra metade cozida. E não esqueça a canja.
- Comida de Exu, Zé, disse ainda Das Dores, menos convencida, já olhando o galinhão com certo apetite.
- Comida de Alice, minha santa. Coisa fina. Anda! A faca! A faca!

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