São Paulo, domingo, 16 de junho de 1996
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O martírio do doleiro

MOACYR SCLIAR
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Prezado senhor Dornbusch:
Devo inicialmente pedir desculpas por minha ousadia, mas não pude resistir ao impulso de escrever-lhe estas mal-traçadas linhas. Que, creio, o senhor receberá bem. Ao contrário de muitos brasileiros, incluindo-se aí altas figuras do governo, não quero reclamar de suas declarações a propósito de uma futura crise do real. Quero, sim, transmitir os meus mais efusivos cumprimentos, minha admiração e, porque não dizer, minha veneração.
Antes de mais nada, porém, devo falar um pouco sobre mim. Opero na compra e venda de moeda estrangeira, principalmente o dólar. Aqui no Brasil dizem que eu sou um doleiro. É uma denominação depreciativa, senhor Dornbusch, que eu, no entanto, aceito com orgulho. Sim, sou o doleiro. E com muita honra. Porque, senhor Dornbusch, ao contrário de outros colegas, eu não entrei neste ramo para ganhar dinheiro. Entrei porque sou um admirador do dólar americano. Entenda bem: sou um admirador do objeto dólar (e também do quarter, do dime, e até do penny). A primeira vez que comprei uma nota de dólar, e era ainda um garoto, quando isto aconteceu, fiquei tão emocionado que mandei emoldurá-la e coloquei-a na parede do meu quarto.
Que dignidade tem o dólar, senhor Dornbusch. Que dignidade. E eu sei o que dá a ele tal dignidade. É George Washington, senhor Dornbusch. Que figura impressionante: o olhar severo, os lábios finos e firmes não polpudos, não carnudos, lábios lascivos, não: austeridade, é o que se vê nesses lábios, nesse olhar, neste rosto. Refletindo, naturalmente, a sua trajetória de vida. Disto posso falar com segurança, porque, da biografia de Washington, sei tudo. Inclusive aquela história que quando ele era pequeno ganhou um machado e saiu cortando tudo pela frente e cortou a cerejeira predileta do pai dele e depois o pai perguntou quem tinha feito aquilo e ele respondeu fui eu meu pai eu não sei mentir.
Eu não sei mentir. Quantos políticos podem dizer a mesma coisa, senhor Dornbusch? É fácil entender a minha admiração pelo grande líder. E eu sempre dizia para a Marta: o nosso primeiro filho vai se chamar George Washington. A Marta era a minha noiva. Ela estava só esperando que eu ganhasse dinheiro bastante para nós nos casarmos. E os negócios estavam indo tão bem que já tínhamos até data marcada.
Aí veio o Plano Real, senhor Dornbusch.
Veio o Plano Real e o dólar, que era uma moeda forte, debilitou-se. De uma hora para outra já não comprava mais nada. O país continuou pobre, mas o dólar perdeu a força. E aí chegamos a esta surrealista situação: é mais barato comprar roupas nos Estados Unidos, é mais barato comprar eletrodomésticos nos Estados Unidos, é mais barato comprar comida nos Estados Unidos. O dólar tornou-se uma moeda de segunda categoria. O senhor já imaginou que humilhação isto representa para George Washington? Para o grande George Washington, aquele que nunca mentiu?
Minha vida desandou, senhor Dornbusch. Ninguém mais queria comprar dólares. meus rendimentos caíram. A Marta perdeu a paciência, desfez o noivado, casou com o gerente de um plano de saúde, um homem que ganha muito dinheiro.
A depressão apossou-se de mim. Eu já pensava em recorrer ao Prozac -quando dei com suas declarações no jornal. E senti renascer a esperança, senhor Dornbusch. Tenho certeza de que suas palavras foram dirigidas diretamente para mim, para este modesto doleiro. Anime-se, era o que o senhor me dizia, anime-se porque dias melhores virão. O dólar recuperará a sua antiga grandeza, seus clientes voltarão, Marta virá, em lágrimas, pedir perdão.
É um homem novo que lhe escreve estas linhas, senhor Dornbusch. Um homem cheio de gratidão. E quero lhe dizer que estou preparando uma homenagem ao senhor.
É uma cédula especial, senhor Dornbusch. Uma cédula de real -só que ela terá a sua efígie. E sabe o que vou fazer com ela? Vou emoldurá-la e afixá-la na parede, ao lado do primeiro dólar que eu ganhei. Assim, nunca esquecerei do senhor.
Só espero que o senhor esteja falando a verdade. Só espero que o senhor seja como George Washington. Corte qualquer árvore, senhor Dornbusch, mas não corte a cerejeira da minha esperança."

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