São Paulo, domingo, 16 de junho de 1996
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O retorno do reprimido

MODESTO CARONE
ESPECIAL PARA A FOLHA

Ele tinha acabado de morder o tapete num dos seus acessos de raiva quando se lembrou de que agora já podia voltar. Ainda de cócoras arrancou com a mão trêmula os fiapos grudados no bigode branco, decepou com o dedo em riste a baba pendurada no queixo e saltou para cima seguindo a mola do braço direito disparada para o alto. Naturalmente as juntas reagiram mal mas ele não acusou a menor falha no seu desempenho -o entusiasmo da volta anulava toda possibilidade de crítica. Tanto que apenas pousou no chão, de braços estendidos, foi procurar o espelho no centro da sala acolchoada. Àquela altura a imagem não era muito nítida, seja por causa da distância, seja por causa do reflexo nas botas recém-lustradas. A falta de visão era um embaraço, o que não o impedia de se contemplar fora de foco pelo ângulo mais favorável. De qualquer modo gritou o seu hurra! vespertino enquanto observava o cortejo de farrapos avançando pela superfície do espelho. Com um olho e uma sobrancelha ele os fez parar; com os outros dois ficou admirando o crepúsculo que manchava de sangue as vidraças. Terminado o espetáculo bateu os calcanhares e de ventas infladas, ouvindo vagos tambores, andou até a porta. Fazia tempo que ela ficava travada por fora. Mas agora ele sabia que sempre há um vento qualquer que a destrava assim que a noite cai.

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