São Paulo, domingo, 16 de junho de 1996
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Deus e o diabo na terra do real

SÉRGIO SANT'ANNA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Na bíblia moderna que é o "Finnegans Wake", de James Joyce, a linhagem humana passa pelos irmãos Shem e Shaun. Entre as muitas diferenças que os separam, o primeiro é o introvertido, o torturado, que escreve livros mortificantes, rejeitados pela sociedade, enquanto o segundo, homem de ação, é autor de best sellers. Mas é da energia gerada pelo conflito deles que o mundo se move.
Solicitado pela Folha a escrever uma ficção sobre o Brasil do real, ou do pós-real, caso confirmados ou desmentidos pelos fatos os presságios do economista americano Rudiger Dornbusch, Sérgio Sant'Anna (Shem) não tem outro remédio senão pedir auxílio a seu irmão Ivan Sant'Anna (Shaun), autor de "Rapina", romance que, narrando um sequestro que abalou o mercado financeiro, vem frequentando algumas listas de livros mais vendidos no país.
O fax que aporta durante a noite na casa de Shem é de arrepiar.
Shaun acha que Mr. Dornbusch tem uma certa razão e não só o real como os pesos argentino e mexicano podem levar um tombo de uma hora para outra. Basta que a Bolsa de Valores de Nova York, que vem subindo desde a última grande queda, em 1987, tenha uma violenta recaída.
O mercado entraria em pânico e os especuladores desunidos de todo o mundo tentariam sair ao mesmo tempo por uma porta estreita, desfazendo-se de seus investimentos em pesos, reais e outras moedinhas, falsas se comparadas ao dólar, marco, iene.
Ivan, ou Shaun, que se auto-define, atualmente, como um terrorista do mercado financeiro, usando como bombas as teclas do seu computador, vai mais longe ainda. Diz que o vaticínio de Dornbusch para o real é até otimista, ao comparar nossa moeda com a mexicana. Pois esta última só não virou pó porque Clinton, o Banco Central americano e o FMI rasparam o fundo do tacho de um fundo para socorrê-la. Questões de aliança e de vizinhança, pois um terremoto com seu epicentro na Cidade do México faria tremer alicerces em Wall Street. Repetiriam uma ação dessas de resgate pelo real?
Shaun encerra o fax aconselhando Shem a deixar seus minguados reais numa poupança, ou fundo de 30 ou 60 dias, mas que fique de olho em algum doleiro de emergência.
Shem, que não é especulador, mas escritor, telefona para Shaun:
- Poxa, meu irmão, eu pedi uma ficção e você me vem com projeções econômicas.
- Está certo. -resmunga Shaun- Anota aí a ficção:
Cenário: O Brasil sem o Plano Real. Pior. Tendo havido e fracassado o plano. O preço do frango disparando, a volta das maquininhas de remarcação aos supermercados, o governo emitindo notas de 100, 1.000, 10 mil, 100 mil reais, novos reais, cruzeiros de novo, novos cruzados. Talvez a gente tenha até de sair com o frango debaixo do braço para trocar por alguma outra mercadoria.
Neste ponto, Shem Sant'Anna resolve intervir, para que a sua ficção não seja toda roubada de Shaun:
- Se você reparar bem, as notas de dólares já trazem inscritas uma fé calvinista: "Em Deus nós confiamos". Enquanto nas cédulas de reais há um tímido "Deus seja louvado", quase de pedinte de rua.
Shaun Sant'Anna filosofa:
- Será que coube a nós, brasileiros da segunda metade do século 20, o papel de povo eleito às avessas, os malditos da inflação? Será que o real foi apenas um Sarney melhorado, uma Zélia de calças? Pois, se assim for, só nos resta assumi-la, a inflação. Fazendo com ela o que Hollywood fez com a Aids, glorificando-a, premiando-a. Vamos torná-la perene, obrigatória, acabar de vez com a moeda, a poupança, com os bancos, voltar ao escambo, partir para o anarquismo, a revolução. Bem, chega. Para fazer uma ficção sobre o Brasil com o fracasso do real, é preciso reler Dante.
Shem arremata:
- De qualquer modo eu teria uma sugestão a fazer aos futuros governantes, se lhes couber este nome. Ao criarem uma nova moeda, que a batizem logo de cruz-credo e imprimam na cédula de maior valor a efígie de Glauber Rocha. E gravem em cada face da nota uma vela acesa. Uma para Deus, outra para o diabo. Tem de dar certo.

LEIA conto de Ivan Sant'Anna à pág. 5-6

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