São Paulo, domingo, 16 de junho de 1996
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A mulher e a nau

CARLOS HEITOR CONY

Rio de Janeiro - O navio branco, com seus equipamentos eletrônicos, suas despensas abarrotadas de caviar, lagosta e champanha, fez escala na pequenina ilha coberta de mato, cinco ou seis choupanas espalhadas pelo litoral. Como não havia cais, foram lançadas as âncoras da proa e amarrado o cabo da popa num ferro grosso, enterrado na praia.
Ao cair da tarde, um crioulo de bermuda verde e camisa vermelha foi desamarrar o gigante. Tirou a laçada que prendia o cabo ao ferro e ficou olhando.
Ele podia ter ido embora levando o navio inteiro para casa, aquele gigante iluminado e branco, fosforescente, com seus sonares e radares, suas lagostas e seus passageiros. Dele dependiam toneladas de vida, técnica e luxo. Daria muita mão-de-obra armar outro esquema para liberar o barco.
O crioulo olhou bem, avaliou a situação, houve um momento em que hesitou, finalmente soltou o cabo, desprezando a gigantesca presa que boiava à sua frente, condenando-a a seu destino de água e noite.
Lembro desse crioulo quando leio as revelações das mulheres que decidem contar os podres de seus ex-maridos ou amantes. Policiais e jornalistas conhecem o filão ("chercher la femme") e descolam assunto para distrair uns e outros, além de distrair o público em geral. Nos 15 minutos de glória, a ex-mulher, ex-amante ou ex-namorada tem em suas mãos um navio inteiro, podendo fazer dele o que bem ou mal entender.
Distribuem culpas, taras e suspeitas com exemplar cara-de-pau. Na maioria dos casos, elas foram cúmplices e até instigadoras de tudo. Lembro a jovem que brigou com o amante, médico aqui no Rio. Acusou-o de bacanais com clientes -mas omitiu o principal: bissexual, ela se passava por enfermeira para aproveitar a farra. Foi assassinada. O júri, por machismo ou justiça, absolveu o médico.

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