São Paulo, sábado, 22 de junho de 1996
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O retrocesso legislativo

LUÍS MARCELO INCARATO

O "substitutivo" que o Senado ofereceu ao projeto de lei do deputado Hélio Bicudo traz imperfeições técnicas que o inviabilizam e desrecomendam. Estabelecendo que o inquérito permanecerá sob o crivo da autoridade militar, mesmo quando a competência para o processo for da Justiça comum, o projeto, de início, afronta o art. 144, parágrafo 1º, incisos I, II e IV, e parágrafo 4º da Carta Política, pois à polícia judiciária civil, estadual ou federal, compete, por força de norma constitucional expressa, conduzir o inquérito policial civil que dá suporte à ação penal no âmbito da Justiça comum.
Na tentativa de deixar sob o controle da caserna a direção do inquérito, o "substitutivo" do Senado criou constrangedora situação jurídica, ao privar o judiciário civil, nos casos em que lhe competirá julgar, de estar presente no palco dos acontecimentos.
O "substitutivo" criou inusitada modalidade de desaforamento dispondo que, reconhecida na fase inquisitória alguma das causas excludentes da criminalidade (legítima defesa, estado de necessidade e estrito cumprimento do dever legal), competirá à Justiça castrense processar e julgar o réu. Ressalta nítida a intenção de criar mais um instrumento processual favorável às corporações militares, ministrando-lhes meios de, já no inquérito (sob seu exclusivo controle!), subtrair seus integrantes do julgamento pelo Tribunal do Júri.
Todavia o reconhecimento de uma descriminante se faz no curso do processo criminal, pelo juiz competente, à vista das provas. É atividade jurisdicional que exige apurado exame de fato criminoso. Argumentar que o projeto do Senado restringiu às excludentes "manifestamente" caracterizadas no inquérito o poder de alterar a regra geral fixadora da competência, dispensando a exigência legal de uma prévia decisão judicial reconhecendo a descriminante, significa acolher de olhos fechados a versão do condutor do inquérito.
Como ficaria a Justiça se o encarregado do inquérito, visando fraudar a verdade, carreasse para os autos falsos elementos probatórios, simulando "manifesta" descriminante, que somente um percuciente exame do processo pudesse desmascarar? É justamente na fase inquisitória que se acentua o risco da proteção classista, prejudicando a apuração da verdade.
De pouca valia transferir para o judiciário comum a competência para o julgamento de policiais militares nos crimes dolosos contra a vida sem a garantia de um inquérito insuspeito. Se o corporativismo se fez presente na fase inquisitória e manipulou a prova, distorcendo os fatos, é quase certo que o juiz criminal não disporá de meios para embasar a condenação. A prevalecer o "substitutivo", somente irá à apreciação da Justiça comum o que for do interesse da corporação militar. Nos casos mais graves, como os de extermínio, eliminada a vítima, restará nos autos do inquérito apenas a versão do acusado militar, possivelmente encapuzada sob o manto de uma oportuna "descriminante", fixadora da competência, convergindo o processo para o foro castrense.

Luís Marcelo Inacarato, 54, é juiz togado do Tribunal de Justiça Militar de Minas Gerais.

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