São Paulo, sábado, 22 de junho de 1996
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Gol de Gabeira

WALTER CENEVIVA
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

No começo da semana Fernando Gabeira tratou do fio da navalha que aparta a informação plena e a intimidade das pessoas vivas e mortas, ao confrontar a vontade de saber e o direito à privacidade. Foi um gol de placa, na clareza da exposição e na sensibilidade mostrada com o tema, que é, por natureza, cheio de controvérsia, até pela preponderância que tem sido dada à informação a todo custo, mesmo quando tenha de vitimar inocentes ou ofender a lei. Marilene Felinto veio, no dia seguinte, para dizer do número de idiotices divulgadas, numa comunicação social onde pululam semi-analfabetos metidos a humoristas. Marcelo Leite também tratou do tema no domingo.
O texto de Gabeira me inspirou algumas extrapolações, exclusivamente na área do direito, que dele podem ser tiradas. A primeira delas diz respeito a uma garantia tão fundamental quanto todas as outras definidas no artigo 5º da Constituição: a do direito da intimidade ou da privacidade, que é, em síntese, o direito de ser deixado só, de não ser incomodado por ninguém. Gabeira lembra os idosos clientes da Clínica Santa Genoveva, no Rio, em que tantos deles morreram. Foram fotografados, seus rostos saíram em jornais e revistas, apareceram na televisão, sem que se cogitasse de pedir sua autorização. Foram vítimas de duas negligências: da clínica e da mídia.
A violação da intimidade daquelas pessoas de idade avançada é exemplo dramático do desrespeito da privacidade, ofendendo a norma constitucional, sem nenhum benefício para o direito de informação que a Constituição também preserva. Ou seja: todas as deficiências do tratamento daquela casa de idosos poderiam ser informadas - no uso adequado da liberdade de expressão- sem expor os seus principais interessados ao noticiário.
O exemplo da desastrada cobertura da Escola Base, em São Paulo, não foi suficiente para impor mais prudência no respeito ao direito constitucional da intimidade dos entes privados. O homem público pode ter sua imagem divulgada livremente, salvo se para aproveitamento econômico indevido. Já o ser privado, comum, do povo, tem direito de não ser incomodado, nem mesmo pela eventual notícia favorável. Esse direito tem sido desrespeitado sem nenhuma cerimônia, até porque muitas vítimas nem sabem como poderiam defender-se.
O processo deletério da quebra da intimidade e da denúncia escandalosa, logo esquecida, que atinge indiferentemente culpados e inocentes, termina beneficiando aqueles. Hoje já se percebe que a coletividade não sabe (nem pode) distinguir uns dos outros. Está ficando fácil acreditar que todos são culpados. Quando a cuidadosa averiguação das provas termina afirmando a inocência de alguém, ninguém acredita, ferindo, mais que a intimidade, a própria honra dos atingidos.
No momento em que ser inocente de um delito deixe de ser garantia de qualquer direito, somos todos atingidos. O prejuízo é da sociedade, como o conjunto das pessoas ofendidas pelo tratamento injusto. Pouco importa hoje que a Constituição afirme a inocência até que sentença transitada em julgado termine punindo a culpabilidade. Estamos chegando, no pêndulo da história, ao extremo de transformar acusação divulgada em prova definitiva de culpa e de condenação, pelas versões que chegam ao povo, nos meios de comunicação.
Gabeira detectou uma verdade social que vale para o direito: estamos numa encruzilhada, na qual o desnudamento moral a que as pessoas são submetidas deve ser contrabalançado pelo respeito à subjetividade humana, que resguarde seu espaço interior contra o escândalo público. Se não cuidarmos dessa cautela, só os maus, só os delinquentes se beneficiarão.

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