São Paulo, quinta-feira, 27 de junho de 1996
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Matar ou morrer

JOSÉ MANOEL DE AGUIAR BARROS

A lei nº 9.140, que prevê a hipótese de indenização aos familiares dos mortos e "desaparecidos" durante o regime militar, tem ensejado uma grande discussão. Sob o título "Uma questão de honra" ("Tendências/Debates", Folha, 18/6/96), o professor Fábio Comparato, após digressionar sobre Aristóteles e Montesquieu, "avalia" o caso Marighella à luz dessa lei.
O professor Fábio Comparato afirma que: 1) Marighella pregou a necessidade da luta armada para derrubar o regime militar; 2) os agentes da repressão o atraíram para uma cilada e o executaram de forma sumária e selvagem; 3) o local da cilada foi cercado e transformado em praça de guerra, ou seja, em local assemelhado a uma dependência policial, como diz a lei nº 9.140; 4) por isso, a família de Marighella tem todo o direito às reparações previstas na referida lei.
Interpretação diversa têm os militares envolvidos direta ou indiretamente naqueles fatos, sob o argumento de que tanto Marighella como Lamarca eram "combatentes", haviam declarado guerra ao Estado, não se encontravam sob custódia e uma das consequências "inevitáveis" da guerra, seja ela convencional ou revolucionária, é a eliminação física do adversário.
Para que este artigo não gere dúvidas quanto à sua intenção, gostaria de afirmar que, para mim, Marighella tem a mesma dimensão histórica de Zumbi e Tiradentes. Por essa razão, perguntamos: o ato de indenizar, a tentativa de enquadrar Marighella nos pressupostos da lei 9.140, não estariam tirando dessa figura heróica, ainda que de posições políticas questionáveis, aquilo que ela tinha de mais notável, a vontade de lutar, de correr riscos, de ir até as últimas consequências?
A reconstituição da morte de Marighella, desmentindo a "versão oficial", restabelecendo a verdade dos fatos, embora necessária, tenha significado político e seja recompensadora para seus amigos e familiares não tem a mesma importância, do ponto de vista da história, da opção política deliberada daquele revolucionário de enfrentar a ditadura com a força das armas. A verdade é que Marighella e Lamarca, por entenderem inexistir outra alternativa para derrubar o regime militar, e também por convicção ideológica, colocaram-se em posição de beligerância contra o Estado militar e policial. Tinham, portanto, perfeito conhecimento do que isso significava, vale dizer, dos riscos que corriam, sob todos os aspectos. Se os "beleguins" da ditadura torturavam e matavam até "simpatizantes" de suas idéias, o que não fariam com os verdadeiros protagonistas da luta armada?
Por acaso não foi Marighella o autor do "Minimanual de guerrilha urbana", adotado pelo IRA e pelas Brigadas Vermelhas, em que ensinava toda sorte de escaramuças e ações que fatalmente culminariam em perdas de vidas humanas? Não nos parece politicamente coerente com a vida desse homem, acima de tudo corajoso, tentar enquadrá-lo nos pressupostos da lei nº 9.140 ou apresentá-lo, consoante a visão jurídico-burguesa do mundo, como uma simples vítima da ditadura militar. Essa postura tira de Marighella aquilo que o diferencia dos demais opositores do Estado policial: era um combatente radical que ensinou a guerrear nas ruas e nelas morreu emboscado.
Não se trata aqui de aderir ao "grotesco argumento" dos militares que declararam guerra à sociedade, golpearam a democracia e implantaram um regime de terror. Muito menos de justificar as violações dos direitos humanos a que recorreu o Estado policial.
Trata-se, isso sim, de reconhecer, sem sentimentos de culpa e sem preconceitos, que, naquelas circunstâncias, dada a violência do regime militar pós-68, a luta armada (que inclui atos de terrorismo) parecia, ao menos aos olhos dos revolucionários mais radicais, a "luta mais curta". Por isso, querer transformar esses revolucionários em vítimas da guerra que eles próprios decidiram fazer é tirar-lhes a grandeza, é despotencializar-lhes a ação e a coragem, é diminuir-lhes o fervor revolucionário, é esquecer que eles, em função de seus ideais, estavam dispostos a tudo, inclusive matar ou morrer.

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