São Paulo, domingo, 30 de junho de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Os sertões de Portugal

EDUARDO LOURENÇO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Não há português com gosto das letras que ignore a "Terceira Margem do Rio". Um conto mítico para colocar ao lado dos mais famosos de Flaubert ou Tolstói. Divulgado pelo cinema, em versão pálida, alguns terão seguido a busca do Graal por Augusto Matraga. Ignoro quanta gente atravessou os Gerais na companhia de Riobaldo e de "o que não há", do "Grande Sertão: Veredas". Mas os que fizeram a viagem, entre eles, alguns dos mais conhecidos romancistas contemporâneos, não a esqueceram. Graças a eles, Guimarães Rosa, não apenas como uma das grandes referências da ficção nesta última metade do século, mas como imaginário incorporado nas nossas letras, é uma presença viva.
Não era óbvio que um autor tão visceralmente ligado a um espaço singular, como do Grande Sertão, e à língua que o fala e mitifica numa espécie de canção de gesta sutil, bárbara e quase intraduzível, tivesse um acolhimento tão profundo no interior de nossa ficção, herdeira e, em geral, muito fiel ao código romanesco europeu. Por isso mesmo, o mais conhecido crítico português, João Gaspar Simões, se recusou a ver no "caso Guimarães Rosa", embora impressionante, segundo ele, mais do que um fenômeno de moda. Admirava a sua extraordinária capacidade lúdica, o senhorio e a inventividade sem precedentes do campo e da materialidade de uma língua, convertida em linguajar particular, mas negava-lhe por isso universalidade. Na sua perspectiva, futuro.
Quando se entregava a estas reflexões, algumas das quais eram talvez eco da acusação de "experimentalismo" ou "formalismo", de certa crítica brasileira, o nosso famoso crítico ignorava a sedução que Guimarães Rosa começava a exercer na jovem ficção portuguesa dos anos 60 e 70. Sedução de dupla face: a exercida pelo seu exemplo de "mineiro" e fabuloso conhecedor de todos os veios de uma língua sepultada não apenas nos seus arquivos mais nobres (de Fernão Lopes a Aquilino), mas viva no seu arcaísmo quase abstrato de falar de sertanejos que nele dizem o seu mundo e o mundo, e a sedução não menor pela sua própria visão da vida.
A grande descoberta de Guimarães Rosa foi a de saber que a parte equivalia ao todo, que o Sertão era o mundo inteiro. E que bastava descrevê-lo como ele, cotidiana e inocentemente se dizia, para tocar na Origem e ser original nela. Do mais particular, Guimarães Rosa fará "o Geral", os gerais de nosso imaginário comum submerso, como Joyce fizera do inglês de Dublin (iluminado com a memória de outras Dublins) uma língua sem mais sujeito que a de quem com ela brinca e a converte em espelho do mundo.
Em Portugal, ninguém como a autora de "Marina Mendes" e de "Casas Pardas" parece ter convivido tão intimamente com o universo de Guimarães Rosa. Um profundo conhecimento e prática da ficção anglo-saxônica (Virginia Woolf e Joyce) predispunham Maria Velho da Costa para este encontro. Como para Guimarães Rosa, "o corpo da língua" é, para Maria Velho da Costa, o lugar matricial, a casa aberta e fechada que delimita e transcende a nossa experiência do mundo. Visitar e revisitar esse lugar, explorá-lo nas suas virtualidades de som e sentido, é ocupar o centro da Terra e da vida.
A ficção portuguesa conhecera com Agustina Bessa-Luís uma libertação decisiva de sua clássica postura de ficção naturalista e realista. Mas Agustina serve-se da língua como se ela não tivesse densidade e peso próprios, como se não fosse matéria. Por isso todos os vôos, todas as fantasias lhe são permitidos. O ficcional é o seu elemento natural. Com a geração da autora de "Lucialina", a língua, como matéria luminosa e opaca ao mesmo tempo, como corpo incontornável da imaginação, toma o primeiro lugar. Não sei se tomaria sem a mediação história de Guimarães Rosa, grande aventureiro no sertão indefinidamente reverberante das palavras.
Todo o contato com Guimarães Rosa é perigoso. A sua prática estilística é tão singular que não permite assimilá-la sem deixar marcas visíveis. É preciso ter o seu mundo próprio, estar bem no centro de sua visão, como Maria Velho da Costa, para não correr esse perigo. Próximos na sua relação com a língua como universo original e quase autônomo, o romancista brasileiro e a romancista portuguesa, as suas visões de mundo não procedem do mesmo espírito.
Em última análise, a visão de Guimarães Rosa releva de uma tradição mítica e simbólica de recorte oriental que em vão buscaríamos na autora de "Casas Pardas". Mesmo complexa, essa visão é, em última análise, solar, o que não é -apesar das suas referências ideológicas- o caso da de Maria Velho da Costa. Nesta, a sombra de Freud, os labirintos do inconsciente e com eles uma visível poética da não-inocência, que pode exprimir-se como gosto da perversidade, está por demais visível. Guimarães Rosa será sempre o autor de "O Burrinho Pedrês", de uma inocência instalada no coração da vida, alegoria da existência humana "todo calma, renúncia e força não usadas". Não há "inocentes" assim na obra de Maria Velho da Costa, porque, para ela, o Mal, e suas mil visagens, não é, como em Guimarães Rosa, o fruto de uma má leitura nossa dos mistérios do mundo e do coração, mas uma espécie de bafo ardente que contamina a substância das coisas e a vida dos homens. Aqui se desencontram dois autores para quem a língua e sua história, como memorial de nossas proezas, mesmo as não-sabidas, é a verdadeira Távola Redonda.
Maria Velho da Costa não é a única dos nossos ficcionistas atuais que "dialogam" com a obra de Guimarães Rosa e, gostosamente, num contexto cultural e histórico tão outro que o do Brasil do autor de "Grande Sertão: Veredas". A mesma atenção à língua como fim e não apenas como asa da mensagem se encontra em Almeida Faria. Em particular no seu romance "Cortes". Mas, como o título o indicia, esses "cortes", com a sua vontade de ruptura em relação ao expressionismo lírico dos seus começos, não relevam exatamente da poética da metamorfose e superabundância tão características do mundo de Guimarães Rosa, em que tudo é descrito, glosado, cantado, como se acabasse de nascer e florisse. Almeida Faria serve-se de Guimarães Rosa de maneira ascética para reconduzir as palavras ao seu núcleo de silêncio. Ou mais à "guimarães-rosa", ao seu osso.
É num outro plano -no do sentido- que a visão de Almeida Faria, embora com uma sombra de ironia ou sarcasmo que nada devem a Guimarães Rosa, ou são o seu oposto, se aproxima da do autor de "Sagarana". No do mito e da alegoria. Esta parece ser a característica de uma boa parte da nossa ficção nos últimos 30 anos, com a obra de Lídia Jorge igualmente o testemunha. Talvez tão importante como o seu exemplo de mineiro da linguagem tenha sido o de contador de histórias estruturalmente míticas. Assim, dos dois lados do Atlântico e no campo de uma mesma língua revisitada e reinventada por ele com luxuriante fulgor, Guimarães Rosa contribuiu para colocar os ponteiros da nossa ficção naquele espaço de sonho e mito que lhe é conatural. E de onde nunca deveriam ter saído. Ou só saíram na aparência.

Texto Anterior: Um mestre da modernidade
Próximo Texto: O olhar insondável
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.