São Paulo, domingo, 30 de junho de 1996
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A doença da literatura

MARIA RITA KEHL

especial para a Folha Nietzsche, o mais transgressivo de todos os filósofos, escreveu em algum lugar que não seríamos humanos sem a experiência da doença. De fato, a normalidade, a adaptação à "vida como ela é", o pleno silêncio dos órgãos (ou dos afetos) garantidos pela saúde podem ser modalidades consentidas de uma doce alienação. Talvez "a verdade" não esteja do lado da doença, como não estará, toda, de lado nenhum; mas a doença, física ou mental, com os brutais deslocamentos que promove em nossas vidas, nos permite espiar a dita realidade "de um outro ângulo/ com outras legendas" como num verso do poeta Armando Freitas Filho. Um outro ângulo a partir do qual se revela alguma coisa que na vida dos outros, "normais", havia sido recalcada.
"As pessoas perguntam. Como você foi parar lá? O que querem saber, na verdade, é se existe alguma possibilidade de também acabarem lá". Assim começa o primeiro capítulo de "Moça Interrompida", primeiro livro da escritora americana Susanna Kaysen traduzido no Brasil, em que ela relata os dois anos que passou internada no hospital psiquiátrico McLean, em Massachusetts, na década de 60. "Não sei responder à verdadeira pergunta. Só posso dizer: É fácil./ E é mesmo fácil escorregar para dentro de um universo paralelo. São tantos... Mundos que convivem com este mas não lhe pertencem, embora a ele se assemelhem" (pág. 9).
Do Brasil dos anos 90, outro escritor começa seu relato da experiência da doença -nesse caso uma doença sem volta, a Aids- quase do mesmo jeito: "Ele me perguntaria, como tinha perguntado o outro médico, quando ocorrera a contaminação, todos perguntavam, pergunta de praxe. Responderia que não sabia. (...) Não quero saber, nunca acabamos com o mito das origens, foi, foi, e pronto". Como Susanna Kaysen, também Jean-Claude Bernardet recusa ao leitor, logo na primeira página de seu "A Doença, uma Experiência", o conforto da origem cuja função é separar bem os mundos, o da doença lá e o da saúde aqui.
"Outro aspecto curioso do universo paralelo é que, embora ele seja invisível pelo lado de cá, depois que entramos fica fácil enxergar o mundo do qual viemos", escreve Susanna Kaysen; (...) "De todas as janelas de Alcatrazes dá pra ver San Francisco". "A Aids é a liberdade", escreve Bernardet -frase que, "vista por um outro ângulo"... poderia ser de consolo- mas não é. "A Aids é a liberdade" dos que já não têm nada a perder e podem se dar ao luxo de recusar qualquer pacto covarde, comportado, de conveniência, com a vida. Se não garante, pelo menos acena com a possibilidade de viver um tempo fora da neurose -mecanismos de defesa neuróticos para quê, quando já se está de cara com o que a neurose mais tem, o indizível da morte?
Em "A Perda da Realidade na Neurose e na Psicose", Freud escreve que enquanto na neurose o eu obedece à realidade e recalca parte dos impulsos do id, na psicose, permanece fiel ao id e para isto "se afasta" da realidade. Mas a realidade, o que é? -basicamente uma convenção, um modo de funcionar que possibilita a vida em sociedade, uma relação mais ou menos adaptativa com a natureza, uma particular interpretação do mundo que, compartilhada, "parece verdadeira". Ao "real impossível" de Lacan, os agrupamentos humanos respondem com a criação de uma "realidade" que nos permite viver. Uma frágil casquinha de linguagem recobre o desconhecido, mas não diz a "verdade" do objeto que nos interessa: o real.
Voltando a Freud, a psicanálise revela que esta "realidade" a que o neurótico obedece também cobra seu preço em desconhecimento, pois a estrutura neurótica, para se manter, exige que o neurótico ignore aquela parte da realidade que motivou o recalque. Se a psicose nega a tal realidade e tenta substituí-la por outra, mais de acordo com a realização de desejos, a neurose não a nega, mas ... "não quer saber nada dela".
É este "não querer saber" que constitui o conforto dos neuróticos comuns, que a doença destrói ao recusar as vantagens da adaptação. "Também vinha acontecendo alguma coisa com a minha percepção das pessoas. Muitas vezes, ao olhar para o rosto de alguém, eu não conseguia sustentar uma conexão ininterrupta com o conceito de um rosto. A análise sintática de um rosto pode revelar um objeto estranho: mole, pontudo, cheio de respiradouros e pontos úmidos" ("Moça Interrompida", pág. 41). Uma percepção bastante louca, doidona, pirada, convenhamos; mas não é pela sua dose insuportável de verdade que este deslocamento perceptivo se torna angustiante? Um rosto, um corpo em sua carnalidade animal também são "isto", sangue, ossos e buracos, expressão essencial deste bem que tanto prezamos, a vida. Se esta pequena "alucinação" da moça Susanna fosse pura falsidade, por que nos causaria horror?
"Considerar a ironia como um valor acima de qualquer outro (...), considerar que o mundo moderno está tensionado entre a ironia e os fundamentalismos, e que só importa esse tensionamento" (Bernardet, pág. 33). Ironia e fundamentalismo -do que se trata afinal este parágrafo doido, inexplicado? Estar vivo e seriamente doente, "profundamente doente" ele escreve -não parece uma ironia? Ser visto por todos, (e por ele mesmo) como um condenado à morte, mas estar ligado a tudo o que consiste a vida do lado de cá não é ser ao mesmo tempo irônico e fundamentalista?
Se na loucura (Kaysen) todas as metáforas são abolidas, a ironia se torna impossível e as palavras são tratadas como coisas -o que as torna ainda mais perigosas do que de costume- na Aids (Jean-Claude) a ironia prevalece sobre todas as outras formas de relação com o real. A linguagem é tudo, e o autor deste breve diário sabe disto: o que pode nos matar, escreve, não é a exposição à chuva, é a superproteção. "Todas essas recomendações são depressivas. (...) Tudo isso nos é dito num momento de fraqueza e vamos assimilando, queremos nos proteger, ser protegidos, superprotegidos. Isso é mortal" (pág. 47). O texto de Bernardet, implacável com o leitor, parece nos avisar: cuidado com o que você diz a um aidético, isso pode acabar com ele. O enfrentamento da doença é uma fonte de energia, e para mantê-la é preciso abolir todo trato com luvas de pelica: "Já que estamos com Aids, pelo menos que se viva a doença com intensidade" (pág. 35).
Do mesmo modo, as internas do McLean sabiam qual era a única enfermeira com um certo poder curativo sobre elas: aquela que não tinha medo de palavras, que dizia "coisas como 'pare com isso' ou 'você é uma chata'. Dizia o que queria dizer, igualzinho à gente" (pág. 78). A experiência da doença torna os eufemismos desprezíveis, nada de perder "par délicatesse" o que resta de uma vida que já anda por um fio.
A doença pode ser uma oportunidade única de subjetivação, a depender da escolha do próprio doente -alienar-se no conforto mortífero das palavras alheias ou constituir um discurso próprio. Mas a doença é um fragmento do real, um pedaço excluído de cada cultura -e o doente é seu "cavalo", como se diz em umbanda: é por onde a doença conseguiu se manifestar. O que me interessa no relato de Susanna Kaysen e Jean-Claude Bernardet é que eles sabem disso; a culpa está excluída de sua relação com a doença, não há qualquer disposição de expiação no modo como os dois autores aceitam o que "lhes aconteceu".
Assim, Susanna sabe que o breve surto de depressão/despersonalização que viveu entre 1967/69 representava uma pequena amostra, apenas mais intensa, do que os jovens americanos daquele período viviam. "No nosso mundo paralelo aconteciam coisas que ainda não tinham acontecido no mundo de onde havíamos saído. Quando por fim elas aconteciam lá fora, era como se já soubéssemos, pois alguma versão daquilo já se desenrolara diante de nós" (pág. 28). Em 68, as internas viram o líder negro Bobby Seale pela TV, preso como elas pelo impacto das coisas que dizia. "Olhamos para ele ali na tela de TV, um homem pequeno, escuro e acorrentado, mas que tinha algo que sempre nos faltaria: credibilidade" (pág. 86).
Do mesmo modo, ela entende perfeitamente que o médico que a internara estava só com medo daquela adolescente "desterritorializada" que acorreu ao seu consultório elegante de subúrbio; interná-la era um modo de livrar-se de um fragmento da massa de jovens descontentes que andava desorganizando a sociedade americana, protestando contra a guerra e o racismo, experimentando sexo e drogas, parando as universidades, fugindo de casa. O texto de "Moça Interrompida" lembra o relato pungente da tentativa de suicídio da poeta Sylvia Plath nos anos 50 ("The Bell Jar") e pertence à linhagem da melhor literatura beatnik americana, embora escrito em 1993.
De sua parte Jean-Claude busca, nas 68 páginas de seu relato, um estilo que não se confunda com toda uma linha de literatura confessional-homossexual que gira em torno do tema da Aids -cita "Noites Felinas", "Angels in America", sem aderir a eles- embora saiba que é difícil ficar fora de um gênero quando o que se quer dizer já está inscrito nele. É que a literatura também é contagiosa, e tanto Kaysen quanto Bernardet são, antes de mais nada, escritores.
A literatura, assim como a doença, não pertence exclusivamente a um autor. Como a doença em relação ao real, a literatura é uma fatia do "espírito do tempo" em busca de quem lhe dê relevância simbólica. Os escritores, seres mais propensos (dispostos?) ao contágio, não escrevem para se curar e sim para afirmar sua própria anormalidade.

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