São Paulo, domingo, 30 de junho de 1996
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Veredas de Deus

ADRIANO SCHWARTZ
DA REDAÇÃO

Há 50 anos, em 1946, o escritor João Guimarães Rosa publicou seu primeiro livro, "Sagarana". Dez anos depois, em 1956, os sete relatos longos de "Corpo de Baile" e o romance "Grande Sertão: Veredas". A primeira data é importante, pois marca a "grande estréia" do autor (como escreveu o crítico Álvaro Lins logo após o lançamento da obra). A segunda é definitiva. A publicação dos dois livros, principalmente "Grande Sertão", faz de 1956 quase que certamente o ano mais importante da história da literatura brasileira deste século já tão próximo do fim.
Nas 563 páginas de "O Roteiro de Deus" e "A Pedra Brilhante", dois ambiciosos ensaios de Heloísa Vilhena de Araújo -diplomata como Rosa-, que a Editora Mandarim publica reunidos, é posto em destaque o aspecto místico-religioso, em uma abordagem inovadora nos estudos sobre o escritor.
"O Roteiro de Deus" é certamente o mais polêmico do livro. Nele, a autora busca mostrar, dentro de uma visão cristã, a trajetória de Riobaldo, o protagonista de "Grande Sertão: Veredas", em direção a Deus -uma caminhada que, segundo ela, repete as etapas percorridas por Cristo (leia entrevista à pág. 5-5).
Para isso, vale-se de citações e análises de teólogos e filósofos medievais, da remissão a figuras mitológicas, de pesquisa etimológica, do permanente cotejo do romance com a "Divina Comédia", de Dante, e, até mesmo, da psicanálise.
A complexidade dessa leitura possibilita inúmeras discussões. Duas, porém, se destacam: uma é comum a todos os estudiosos dos aspectos metafísicos de Rosa -o uso de suas declarações como um dos aspectos motivadores da análise-, e a outra é o modo como a ensaísta interpreta Riobaldo -traço fundamental no livro-, que, para ela, passa por um constante "engrandecimento" ao longo de sua vida.
A voz do autor
Em sua enorme correspondência com os tradutores (leia texto à pág. 5-6) e nas poucas vezes em que deu entrevistas, Rosa frequentemente afirmou que os aspectos metafísico-religiosos eram os mais importantes em sua obra.
Pelo que se conhece do autor, esses aspectos eram também muito importantes em sua vida.
O romancista Geraldo França de Lima, amigo de Rosa e membro da Academia Brasileira de Letras, conta à Folha que o escritor, a quem acompanhou no carro a caminho de sua posse na instituição, não parou de rezar um instante, pedindo, inclusive, que ele o acompanhasse nas preces.
A marcante presença de livros religiosos em sua biblioteca e as histórias de Poty, seu principal ilustrador, também exemplificam bem as características místicas do escritor (leia textos à pág. 5-5).
Como lembra Heloísa Vilhena de Araújo, Rosa disse que "a língua e a vida são uma coisa só", ou seja, que vida e obra estão conjugadas. Assim, o motivo pelo qual suas declarações são sempre citadas por quem o estuda da perspectiva mística parece claro: como as reiteradas declarações de um autor da erudição de Guimarães Rosa, absolutamente consciente de tudo que escrevia ou falava, podem ser ignoradas?
Esse método crítico, que leva em conta a "intenção" do autor, é, contudo, atualmente rejeitado por grande parte dos estudiosos da literatura.
Para Davi Arrigucci Jr., professor do departamento de teoria literária da USP, Guimarães Rosa é um dos bons exemplos em que tal abordagem é desviante de uma leitura crítica adequada, que, segundo ele, deve estar basicamente vinculada à "intenção" do texto.
Já Roberto Schwarz, crítico literário e professor aposentado da Universidade de Campinas, disse à Folha que a postura do autor pode até ser levada em conta, "mas não é de modo algum a última instância analítica". De acordo com ele, "não é necessário se amarrar ao que o autor falou, é preciso ver como a obra se relaciona com o mundo contemporâneo".
Trata-se de uma questão complexa, à qual talvez seja melhor deixar as últimas palavras com Riobaldo, que dizia, por um lado, que "cada um só vê e entende as coisas dum seu modo"; mas também, por outro, que "quem muito se evita se convive".
O destino de Riobaldo
Para Heloísa Vilhena de Araújo, o protagonista atinge, ao final de suas aventuras, uma estatura elevada, um estágio superior.
O pesquisador francês Francis Utéza, autor de "A Metafísica do Grande Sertão", concorda com ela (leia entrevista abaixo). Segundo ele, só aparentemente Riobaldo é um derrotado.
Dentro de um contexto analítico em que o paradoxo é fundamental, ele o vê como um grande vencedor: "Riobaldo se torna um filósofo, um ser que tem capacidade de reconstruir todo o sentido da sua vida".
Há vários graus de discordância dessa postura. Schwarz, em ensaio do livro "A Sereia e o Desconfiado" em que compara o "Grande Sertão" ao "Doutor Fausto", de Thomas Mann, diz que, "realizado o que houvesse por realizar, os dois heróis (Riobaldo e Adrian Leverkhun, protagonista do livro de Mann) se afastam da esfera que os fez grandes (...) Riobaldo vira um pacato caipira pensativo".
Para Arrigucci Jr., "há um sentimento de perda no Riobaldo final -um certo aburguesamento e um sentimento de que o sertão já não há".
Na visão de Arrigucci, Riobaldo é um herói moderno, herói de um "mundo social decaído", do qual uma leitura simbólico-mítica não dá conta. "É uma leitura possível, mas não creio que seja a mais importante, pois isso leva o livro para o universo do mito e o afasta do mundo moderno."
Walnice Nogueira Galvão, outra importante pesquisadora da obra do escritor, autora de "As Formas do Falso", também não acha que seja possível considerar Riobaldo "engrandecido" após suas aventuras. "Talvez dê para dizer que ele adquire uma certa sabedoria."
Para Walnice, porém, "nenhuma leitura dá conta de um livro complexo como 'Grande Sertão', elas são todas complementares".
Sábio, caipira, burguês ou Cristo representado literariamente. As várias leituras mostram que, acima de tudo, 50 anos depois do lançamento de seu primeiro livro, está se cumprindo a vontade do autor: "Quero escrever livros que depois de amanhã não deixem de ser legíveis".
Nascido em 1908, mesmo ano em que morreu Machado de Assis -e esta é apenas uma das muitas coincidências que unem os dois maiores prosadores da literatura brasileira-, João Guimarães Rosa foi homenageado por outro "grande", o poeta Carlos Drummond de Andrade, logo após a sua morte, em 1967: "João era fabulista?/ fabuloso?/ fábula?/ Sertão místico disparando/ no exílio da linguagem comum?".

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