São Paulo, sexta-feira, 5 de julho de 1996
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FHC entre Getúlio e Juscelino

JORGE DA CUNHA LIMA

Quando Fernando Henrique terminou sua entrevista no Canal 2, na França, alguns importantes jornalistas da "Arte", a mais sofisticada televisão francesa, me disseram: " Ah, como gostaríamos de ter um presidente desse nível". Apesar desse reconhecimento internacional, FHC necessita, para realizar o seu projeto, compatibilizar-se ainda mais com a opinião pública brasileira e seus fazedores.
A "Constituição Cidadã", apesar da grandeza de suas intenções sociais, revelou-se uma constituição anã, quase míope, reduzida a memorial das frustrações produzidas pelo passado. O problema é que as grandes transformações da estrutura do Estado sempre se fizeram a partir de revoluções vitoriosas. Fazê-las a partir do voto é bem mais difícil.
Getúlio Vargas o fez, mas no contexto e no pretexto da Revolução de 30. Com habilidade política, conseguiu até barganhar a entrada do Brasil na Segunda Guerra com a sua entrada na era siderúrgica. Mais tarde, eleito pelo povo, Getúlio tentou até os desvãos da tragédia, e em vão, uma reforma mais profunda das estruturas sociais que ele próprio edificara.
Fernando Henrique, no contexto de uma eleição consagradora, disputando com as maiores lideranças políticas, ideológicas e fisiológicas do país, luta obstinadamente para transformar a estrutura arcaica de nossa economia e de nossa administração, o que ele considera condição essencial para a transformação mais ampla da estrutura social do Brasil.
Mesmo os desafetos e os comentaristas políticos, hoje protegidos pela tendência da mídia impressa de resolver seus problemas de mercado com uma pauta denuncista, não podem esconder que FHC escolheu um caminho muito difícil, construir o futuro, mesmo em detrimento do bom julgamento de seu governo por parte expressiva da sociedade. Como fazer a reforma das estruturas num contexto institucional não-revolucionário é o grande desafio do presidente sociólogo.
Nos Estados Unidos, há dois casos bem-sucedidos. Lincoln e Roosevelt, em dois contextos claros: a secessão e a recessão. De Gaulle construiu uma nova república, mas era herói de uma guerra vitoriosa. Mais modernamente, Miterrand e Gonzáles, da mesma dinastia de FHC, fizeram, em seus países, as grandes transformações capitalistas. O Oriente é o Oriente. A China é de um pragmatismo que faz inveja a qualquer presidente de multinacional, e os chamados tigres são os vassalos de si mesmos. No Brasil, FHC está, sim, numa encruzilhada, entre Getúlio Vargas e Juscelino Kubitschek. Entre o sonho das reformas estruturais e o fazedor das grandes coisas visíveis.
JK não fez nenhuma transformação profunda na estrutura da sociedade brasileira, mas mudou o seu ritmo. Desenvolveu uma notável ação de governo a partir de três elementos: um plano de metas, uma simpatia contagiosa e o congelamento da burocracia pela criação paralela de grupos de ação executiva, com homens de sua confiança no comando.
Não é função de amigo, ainda que correligionário antigo, dar palpite em governo alheio, mas acho que FHC deve conjugar os dois caminhos, o de Vargas e o de JK. Se percorrer apenas o de JK, vai brilhar, mas deixará a nação capenga na corrida do século 21. Se insistir apenas na transformação do Estado, vai ter uma pane de oportunidade. O tempo do político, insisto sempre em dizer, é o tempo do mandato, não o dos méritos, que pode às vezes garantir um segundo mandato. Mas compor Getúlio e Juscelino em um só mandato não é fácil. Vejamos.
O Congresso não é péssimo, nem é ótimo. É o Congresso. No primeiro dia de mandato, os deputados já começam a pensar na própria reeleição e nas forças e nos fatores que os elegeram, o ruralismo, o empreiteirismo, o banqueirismo e corporativismo da educação, do Judiciário e da administração. Há deputados que se reelegem há anos sem terem elaborado um único projeto. Mudar a lei é difícil. Vale o peso em ouro. Manter a lei vigente, ainda que burra, também vale ouro. A Previdência que o diga.
Sem o peso inexorável da opinião pública, o presidente não conseguirá muito. Mesmo porque a opinião pública, ainda que execrando os membros do Congresso, tem uma fidelidade intuitiva em favor da instituição. O Judiciário também vive sentado sobre o sólido e imutável texto dos códigos. Formalista como é, no Brasil, o Judiciário, qual um carro antigo, não tem molejo, direção hidráulica nem velocidade.
A administração não fica atrás. Impede, pelo imobilismo, que um grande acervo de valores e experiências se produzam. O peso da estrutura atrofia a qualidade dos homens. O Bresser sacou tudo, mas a caneta da reforma está no Congresso. FHC precisa de JK. Precisa criar o governo paralelo das ações. Ações que comovam o povo, com metas necessárias e sedutoras, realizáveis ainda que com os precários instrumentos do Poder Executivo. JK fez tudo por meio dos Geias.
Sem dúvida, há generosidade num homem de governo que se obstina em transformações que só terão efeito no século 21, mas sem as quais o futuro se tornará um pesadelo. Nesse sentido, Fernando Henrique já é um grande estadista. Mas precisa descer a rampa e também pensar no presente. Por exemplo. Um plano rodoviário racional e profundo no papel não comove ninguém. Anunciar e construir, em seis meses, a BR-116, que mata dez pessoas por dia e liga o país no maior fluxo de caminhoneiros do mundo, pega bem.
Presidente, não há tanto um problema de comunicação. O que se imputa à comunicação apenas deriva de uma estratégia de ações, atos e posturas capazes de convencer a opinião pública e fazedores de opinião. Não apenas a reta razão, mas o sentimento da ação prática. Os economistas sabem estabelecer os meios, a sociedade sabe identificar os fins. Ouvir os dois é preciso. Nem GV nem JK, mas ambos, o que pode resultar num ótimo FHC.

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