São Paulo, domingo, 7 de julho de 1996
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Nas origens de Shakespeare

DAISY WAJNBERG
ESPECIAL PARA A FOLHA

Obras-primas da literatura universal, os clássicos "Romeu e Julieta" e "Otelo, o Mouro de Veneza" não surgiram unicamente do gênio de Shakespeare. A coletânea "Romeu e Julieta e Outros Contos Renascentistas Italianos", organizada pela professora Lucia Wataghin, do departamento de italiano da USP, ressalta uma trama bem mais intrincada.
Trazendo 15 narrativas de 9 autores, na sua maioria datadas do "Cinquecento" e desconhecidas do público brasileiro até agora, a imediata atenção do leitor se volta para os contos "Romeu e Julieta", de Matteo Bandello (1485-1561) e "O Mouro de Veneza", de Giraldi Cinzio (1504-1573), em versões anteriores às imortalizadas por Shakespeare.
Embora a fonte direta de Shakespeare para compor sua famosa tragédia de amor juvenil não tenha sido esta de Bandello, mas a do pequeno poema de Arthur Brooke de 1562 -a organizadora traça no prefácio um complexo percurso de variantes pelo qual Brooke se inspirara na história de Luigi Da Porto (1524), o qual retomava o enredo de Masucci, o Salernitano do século 15. Conhecidos sob a rubrica de "histórias shakespearianas", tais contos demonstram que a narrativa de invenção absolutamente original não existe -e a rigor, toda narrativa é um eco de narrativas. No entanto, o primor e a fineza da escritura de Shakespeare se revelam ainda mais cabais após a comparação com seus predecessores.
Imersos nesse mar das correntes de histórias renascentistas com seus fluxos e refluxos, ficaríamos à deriva num problema de mera cópia ou plágio, ou a questão é bem mais sutil e matizada? Pois, se por um lado há o parâmetro definitivo de Shakespeare nas narrativas citadas, do outro lado da meada encontra-se o marco do "Decameron", de Boccaccio, finalizado entre 1349 e 1351. Matriz de todo material narrável no longo período entre o "Trecento" e o "Novecento", modelo de língua e estilo na prosa italiana, nada mais natural do que observar a retomada de alguns de seus argumentos nos contos desta antologia. Ora, mas também o "Decameron" seleciona temas do repertório tradicional -inclusive das histórias das "Mil e Uma Noites"- e os reelabora numa escritura ímpar.
Histórias que puxam uma fiada de tantas outras, estas narrativas nos trazem o sabor de uma literatura ainda próxima da tradição oral, com a vivacidade do narrador que conta um caso numa roda de conversas, na malícia do jogo entre o contador e a sua audiência, no calor de um testemunho de viva voz de um fato presenciado -como é o caso de "Bembo Burlado", de Bandello. Temas populares como o do demônio que vem à terra para sofrer na própria pele as agruras do matrimônio frente ao caráter caprichoso das mulheres -em "Belfagor, Arquidiabo ou Conto do Diabo que se Casou", cujo autor é o famoso filósofo político Maquiavel- se mesclam a cenas perfeitamente ambientadas num cenário já burguês e sofisticado em outras narrativas.
Longe de uma pretensa simplicidade, porém, nas cores fortes deste universo em burburinho brilham passagens de grande requinte literário. Como na ironia e mordaz realismo de Francesco Maria Molza que, no "Conto de Teodorica Flamenga", entremeia a história dos percalços masculinos na corte a uma mulher casada com comentários a respeito "da força de São Dinheiro em detrimento da esgrima, dos êxtases e das súplicas contínuas (...)". E faz ainda uma bela analogia entre o fluxo das águas, determinante na viagem do marido prestes a ser corneado, e o avolumar-se da paixão dos amantes. No variado repertório de "Romeu e Julieta e Outros Contos Renascentistas Italianos" temos, afinal, um suculento banquete para nossa gulodice de leitores.

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