São Paulo, domingo, 7 de julho de 1996
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Um milênio de autocrítica

JOSÉ NEISTEIN
ESPECIAL PARA A FOLHA

O nome "OstarrŒchi" aparece pela primeira vez num documento do kaiser Otto 3º, em 996, designando o posto leste mais avançado dos domínios dos Babenberg.
Esse posto corresponde hoje aos bosques de Viena. O mesmo documento, em latim, registra que na boca do povo já era uso dizer "Tu felix Austria ride" (Ri, Áustria feliz). Por mais de mil anos, pois, o riso austríaco se volta para a vida, mas, com ironia, se volta também para si mesmo, com distância crítica, como na sátira de costumes do teatro de Johann Nestroy, o gênio do teatro popular vienense do século 19, que plasmou como ninguém algumas das facetas mais características do perfil nacional austríaco.
O Festival de Viena, que celebrou seus 45 anos em 1996, celebrou também o milênio da Áustria e de sua cultura e buscou desenhar os contornos de sua complexa identidade, já que a história do país, imperial quase toda ela, foi feita de muitas etnias, culturas e línguas, sob a hegemonia da língua e da cultura alemã, mas não se confundindo com ela.
O tema deste festival, que reuniu centenas de manifestações intelectuais e artísticas, de 10 de maio a 16 de junho, foi "Mil Anos de Paralisia". Só uma cultura tão contínua, diferençada, autoconsciente e autocrítica seria capaz de inventar, adotar e enfrentar tal tema. Essa paralisia a que se refere é a indecisão diante da vida e de suas emergências, a insegurança diante da ação política e das opções éticas.
Essa paralisia e essa indecisão, que resultam na acomodação, na omissão e na cumplicidade, foram denunciadas com argúcia e brilho no monólogo "Herr Karl", que Helmut Qualtinger escreveu na década de 1960, de parceria com Carl Merz, e do qual foi seu intérprete ideal. No monólogo, o comerciante vienense pequeno-burguês elabora, em dialeto local, suas memórias do período que seguiu ao "Anschluss" (anexação da Áustria pela Alemanha), a que ele aderiu por omissão e passividade, enquanto continuava a saborear sua salsicha e sua cerveja. Essa obra, um modelo de coragem intelectual e de autocrítica histórico-cultural, abalou a Áustria, que nunca a digeriu totalmente.
Qualtinger, contudo, não estava só. Karl Kraus, fundador, diretor e redator único de "Die Fackel" (A Tocha), fustigou incansavelmente em sua revista, entre as duas grandes guerras, a omissão, a hipocrisia e o oportunismo da sociedade austríaca. Arthur Schnitzler a alfinetou também em seu teatro. Kraus o fez com mordacidade; Schnitzler, com ironia.
Na década de 1970, surge Thomas Bernhard (1931-1989), cujos livros e peças, banidos do país durante muitos anos, voltam hoje às prateleiras e aos tablados com imenso sucesso, mas também causando grande mal-estar -o mesmo que Sigmund Freud, também em Viena, analisou com imperturbável profundidade.
Durante este festival, a peça "O Fazedor de Teatro", de Thomas Bernhard, voltou a ser encenada. Como em sua prosa de ficção e em suas outras peças, Bernhard se faz aqui observador e crítico sem concessões da ambiguidade austríaca. Na peça "Heldenplatz" (Praça dos Heróis), por exemplo, ele pergunta onde foram parar as centenas de milhares de austríacos que saudaram Hitler delirantemente em Viena, em 11 de março de 1938, na Praça dos Heróis, quando ele anunciou a "anexação" da Áustria à Alemanha. Bernhard dá um passo adiante: "Hoje, 50 anos depois, a situação na Áustria é ainda pior". "Heldenplatz" foi e continua a ser um grande escândalo nacional.
O tom de denúncia dos "Mil Anos de Paralisia" se estende por uma rede complexa de produções. "Estranha Rebelião", de Erwin Piplits, indaga com Schiller: "Onde se meteu o sagrado?". Como cenário da peça, Piplits escolheu o canal do subterrâneo rio Viena, que também é esgoto, "um espaço ideal para se falar de coisas guardadas, ocultas". Produzida nas profundezas deste canal escuro, dominado pelos cheiros fortes, ela fez do espaço físico o espaço do inconsciente, o lugar existencial dos anseios humanos, um conturbado campo de batalha do homem à procura de uma luz.
Filho de operários, nascido em Viena, em 1939, Erwin Piplits é talvez o maior talento dramático e teatral desta geração na Áustria, já com grande bagagem, tanto como autor quanto como diretor. A divisa que ele escolheu para "Seltsame Unruhe", tirada de um texto de Georges Bataille, é indicativa e reveladora: "Não creio que o homem tenha chance de trazer luz à sua condição antes de dominar aquilo que o assusta. Não que ele deva esperar por um mundo no qual não haja mais terreno para o horror, no qual o erotismo e a morte se encontrem no nível dos encadeamentos mecânicos. O homem, contudo, pode superar o que o assusta, pode ver-lhe o rosto".
A figura feminina central do romance "O Homem Sem Qualidades", de Robert Musil, Clarisse, é o ponto de partida de Hans Neuenfels e Jochen Wermann para o projeto teatral "O Complexo Clarisse". O homem sem qualidades se depara com uma mulher com todas as possibilidades: Clarisse. Em seu romance, Musil tinha imaginado o mundo das idéias de Clarisse como que consubstanciado na loucura. Na peça, Hans Neuenfels cria situações, sempre no espírito da obra de Musil, que contêm um "sentido de possibilidades". É uma peça sobre o "ter-vivido" e o "querer-viver-mais", expressos em situações, tanto de âmbito social como de âmbito particular, cheias de humor e de ironia, de deleite e de dor. Nesse processo, Musil e Neuenfells/Wermann fazem o inventário da psique austríaca, com especial ênfase na figura de Ulrich, "o homem sem qualidades".
Foi contudo na música, da qual Viena continua a ser um dos centros mundiais de maior importância, que residiu a grande metáfora do festival. Para celebrar o seu milênio austríaco, a cidade optou por não eleger desta vez como figura central das celebrações nem Haydn, nem Mozart ou Beethoven, Schubert, Brahms ou Mahler, Schõnberg ou Alban Berg, embora todos eles tenham estado muito presentes nas celebrações.
Viena decidiu dar ênfase a Anton Bruckner, de quem foram executadas as nove sinfonias com excepcional qualidade pela Filarmônica de Viena, pela Orquestra Estatal da Saxônia, de Dresden, pela Orquestra do Concertgebow, de Amsterdã, pela Sinfônica de Viena e pela Filarmônica de Londres, regidas por Giuseppe Sinopoli, Lorin Maazel, Franz Walser Mõst, Rafael Frhbeck de Burgos, Claus Peter Flor e Ricardo Chailly.
Bruckner (1824-1896) nasceu na Alta Áustria e viveu os anos mais produtivos de sua vida em Viena. Só em décadas recentes é que sua obra transcendeu as fronteiras do país. Pessoalmente indeciso e inseguro, mas musicalmente genial, Bruckner é um ícone austríaco. Herdeiro legítimo das tradições de Beethoven, Schubert e Brahms, sua obra floresceu em pleno mito habsbúrgico da inacabável, eterna e católica monarquia.
Com Mahler, que ele muito admirava, Bruckner foi um grande inovador. Suas nove sinfonias combinam a dimensão religiosa, o grotesco, o irônico, o cifrado e uma perturbadora sensualidade, dentro de uma concepção monumental extremamente rica e diferençada; uma expressão musical tão inovadora quanto foi a filosofia de Ludwig Wittgenstein, inequivocamente austríaca e intensamente universal. Valeu a pena esperar mil anos.

José Neinstein é professor visitante na Universidade da Pensilvânia (Filadélfia) e na Georgetown University (Washington), diretor-executivo do Brazilian-American Cultural Institute, em Washington, e autor de "Feitura das Artes" (Perspectiva), entre outros livros.

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