São Paulo, domingo, 7 de julho de 1996
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Crediário e novelas ajudaram a diminuir famílias no Brasil

PATRICIA DECIA
DE NOVA YORK

O incentivo às compras pelo crediário e os valores transmitidos pelas novelas de TV estão entre as causas da diminuição do crescimento populacional no Brasil. A afirmação é do sociólogo canadense George Martine.
Martine, 57, morou mais de 30 anos no Brasil e agora trabalha no Fundo de População das Nações Unidas como assessor para a América Latina.
Segundo o pesquisador, a rápida baixa do índice de natalidade ocorreu sem a existência de um intenso programa de planejamento familiar. Além do crédito popular e da TV, uma série de políticas governamentais em outras áreas teria contribuído para o fenômeno.
"O importante é que todas estas coisas aconteceram ao mesmo tempo: o crediário, as novelas e o processo de urbanização", afirmou à Folha. Leia a seguir os principais trechos da entrevista.
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Folha - Como começou o estudo?
George Martine -Estava comparando a queda da fecundidade na Índia e no Brasil. Na Índia, há uma forte campanha de planejamento familiar desde 1952, a primeira e também a mais sistemática do mundo. Mesmo assim, a fecundidade só recentemente começou a cair. No Brasil, se falarmos em taxa da queda de fecundidade total -que é o número de filhos que uma mulher teria ao longo de sua vida reprodutiva, se ela tivesse a fecundidade típica-, encontramos uma queda de 6 filhos, até 1965, para menos de 2,5 filhos nos anos 90. Essa queda ocorreu especialmente no início da década de 70, o que é realmente notável.
Folha - Quais as causas?
Martine - Juntei os principais trabalhos e fiz uma revisão de toda a literatura sobre o tema. Tentava verificar o papel de vários setores sociais nesse fenômeno -igreja, governo, saúde pública, feministas etc. Havia uma tendência que atribuía a queda da fecundidade a fatores como crise, pobreza, empobrecimento. Rebati essas hipóteses e me centrei numa que, originalmente, era do sociólogo Vilmar Faria. A tese básica é que a queda da fecundidade é resultado de um processo amplo de modificação da sociedade que se manifestou em diversas formas, um resultado inesperado de políticas em outras áreas.
Folha - Quais são essas políticas?
Martine - O governo militar promoveu um modelo de sociedade modernizante, de consumo. A criação do crediário promoveu uma mentalidade consumista em níveis baratos. Não falo de bens como carros, mas de eletrodomésticos e de outras coisas menores. Ao promover isso, o governo introduziu uma dimensão de planejamento na vida das pessoas.
Folha - Mas o acesso da população ao consumo não foi limitado?
Martine -Lógico que há um acesso desigual, injusto. Mas em relação a 1965, por exemplo, o acesso ao consumo é muito maior, há uma mudança evidente. E, a partir do momento em que você precisa planejar seus gastos, isso influi na procriação ilimitada.
Folha - Outra causa apontada pelo sr. são as telenovelas.
Martine - A questão da telenovela vem do investimento, também do governo militar, na infra-estrutura de comunicação. Isso provocou vários impactos não esperados, entre eles a propagação da cultura televisiva. Essa cultura tem sido muito importante nas mudanças de valores, na perspectiva da sexualidade, do corpo.
Folha - Qual é exatamente o papel da telenovela nesse quadro?
Martine - Não somente a novela, mas a televisão como um todo, exerce enorme influência no comportamento, por meio das imagens e conceitos. A novela tem um impacto sobre a mentalidade, sobre a concepção da vida das pessoas. Isso não significa que tenha havido mensagens explícitas de redução de fecundidade, mas dificilmente você verá famílias com muitos filhos. As novelas se passam normalmente em um ambiente que não é condizente com uma procriação ilimitada.
Folha - O que mais a TV causou?
Martine -Há uma altíssima sensualidade na televisão brasileira, que influenciou na separação da sexualidade e da procriação. E, também, por mais de seis anos, ficou no ar o programa da Marta Suplicy, que discutia abertamente esses temas, por exemplo. É lógico que houve um efeito homogeneizante sobre a cultura e o consumo. É interessante notar que o Nordeste teve uma das quedas mais rápidas. A taxa de fecundidade passou de mais de 7 em 1970 para 3,7 em 1991, o que é uma queda brutal. Uma pesquisa demonstra que um dos fatores mais importantes para isso foi o acesso à comunicação.
Folha - Há uma idéia de que famílias mais pobres acabam tendo mais filhos. Por que isso acontece?
Martine - Isso é típico de uma realidade tradicional rural, onde há o acesso a mão-de-obra barata, quase grátis. Mas esse é um ponto importante porque um fator que catalisou todos os outros é o processo de urbanização, que também é resultado de políticas em outras áreas. Veja bem, houve o crédito agrícola, a custo da expulsão de pequenos produtores do campo, que provocou a migração rural-urbana de 30 milhões de pessoas. A procriação ilimitada não se liga com a urbanização. Não há vantagem, a não ser em uma comunidade muito marginal.
Folha - Esses fenômenos não se repetiram na América Latina?
Martine - Nos países da América Latina o mesmo tipo de coisa não tem acontecido. Peru, Colômbia, México têm um ritmo muito mais lento de queda da fecundidade. No México, eles acreditam que a atuação do Conselho Nacional de População é a responsável pela queda. Acho engraçado.
Folha - Então, na sua opinião, os programas de planejamento familiar são totalmente ineficazes?
Martine -Há um lado negativo na inexistência do planejamento familiar. No Brasil, isso resultou na importância do aborto e da esterilização. As famílias decidem não ter filhos, mas isso custa caro: sua liberdade de escolha de saúde reprodutiva, o que leva à esterilização e ao aborto. Ainda hoje há uma demanda reprimida por esterilização.
Folha - O sr. é a favor da esterilização?
Martine - O método não é o ideal, mas não há, na minha opinião, um método ideal. Acho que a esterilização é válida para boa parte das mulheres.
Folha - E o uso da pílula?
Martine - A pílula tem pouco a ver com a queda da fertilidade, porque as mulheres usam por pouco tempo, compram na farmácia, não é a prescrição correta e logo abandonam. Quando não se fazia a esterilização, o método que mais tinha impacto era o aborto. E pode-se dizer ainda que a própria esterilização é o resultado inesperado de uma política de governo. Quando se mudou a previdência e ela foi acoplada ao sistema de saúde, tornou-se interessante para paciente e médico uma intervenção cirúrgica na hora do parto. Há um lucro para o médico, que recebe por fora para fazer a esterilização.

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