São Paulo, domingo, 7 de julho de 1996
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Crime passional

CARLOS HEITOR CONY

Rio de Janeiro - A rua era tranquila, o bonde Lins passava de dez em dez minutos, pelas manhãs vinham o leiteiro, o garrafeiro, o amolador de facas e tesouras. À tarde, o sorveteiro. À noite, o menino que vendia amendoim torradinho, com sua lata cheia de brasas soltando fagulhas. Naquela manhã, a rua estava cheia de gente. O pai berrava ao telefone, daqueles antigos, amarrados na parede: "Crime passional! Um episódio de Dante em Lins de Vasconcelos!"
A linguagem cifrada do pai era habitual, eu não o entendia naquela época -e acho que até hoje não o entendi o suficiente. Precisei descodificar a mensagem que ele passava para o jornal em que trabalhava.
Não sabia o que era crime passional, muito menos quem podia ser aquele Dante. Fui assuntar na rua. O nosso vizinho, um suíço de olhos azuis e barbas brancas, havia se matado. Antes, matara a mulher, fêmea muito cobiçada, que ele encontrara embaixo do Sacadura -famoso apanhador de balões, emérito soltador de pipas.
Sacadura -ninguém sabia como- conseguira escafeder-se antes do tiro fatal. Anos mais tarde o encontrei por acaso, como balconista da loja "Barcelos dos Parafusos". Eu procurava uns pinos especiais para fixar o motor de uma lancha, ele quebrou o meu galho.
O episódio de Dante a que o pai se referira deveria ser o mesmo que lembrei em crônica passada: Francesca e Paolo varados pela mesma morte na carne única do adultério. Ele e o suíço colecionavam selos, trocavam raridades, acho que o pai também se candidatava ao episódio de Dante, ele se assanhava diante da mulher que se chamava Ema, como a Bovary.
Foi o primeiro crime passional de meu conhecimento. Depois desse drama, cristalino, transparente, parece que as coisas pioraram. Peritos macabros e computadores complicados avacalham com a tragédia. Mas a minha rua era tranquila e o bonde Lins nem existe mais.

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