São Paulo, quinta-feira, 11 de julho de 1996
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Prazer em conhecer, tenho HIV...

CAIO ROSENTHAL

No início do mês de junho, o conceituadíssimo semanário "The New England Journal of Medicine" aborda um tema extremamente interessante, alertando para novas e polêmicas questões referentes a prevenção e condutas éticas no contexto da Aids, após 15 anos do primeiro caso notificado ao CDC (Center for Disease Control) dos EUA.
Objeções de ordem política, filosófica e pragmática ao conceito de responsabilidade estão sendo revistas. Novas estratégias de prevenção vêm sendo reavaliadas para adaptar-se aos desafios dos novos tempos.
Partindo do princípio real de que a infecção pelo HIV está avançando em todo o mundo, e em maior escala entre os heterossexuais, como consequência do consumo de drogas, consideramos que já existe, pelo menos, uma consciência coletiva da existência da Aids em praticamente todas as faixas etárias e que as pessoas infectadas têm demonstrado algum grau de preocupação e responsabilidade com seus parceiros.
O articulista da revista levanta uma pergunta intrigante: "Como eu uso preservativo, existe obrigação adicional de informar meu parceiro(a) que estou infectado?" É uma pergunta que carrega irritante dose de realismo, complexa e cuja resposta exige alto grau de sensibilidade.
Primeiro, o autor parte do princípio de que há universalização do uso do preservativo, a meu ver otimista demais; segundo, para responder teríamos que assumir que estamos em uma sociedade avançada, com responsabilidades mútuas entre os parceiros. E obrigações idem. Infelizmente, não é o que observamos em nosso meio, em que o preço da camisinha ainda é considerado abusivo e temos gigantescos preconceitos contra seu uso.
Essa pergunta me intriga e logo em seguida me vem à mente: dissolvidos os "grupos de risco", quem deve se preocupar em fazer os testes para saber se está infectado? Saber mais cedo é melhor que deixar para mais tarde? Aliás, saber é melhor que não saber?
Do ponto de vista de saúde pública, não há dúvidas: esconder ou ignorar aumenta o risco de transmissão. Do ponto de vista médico, a resposta afirmativa é óbvia. Hoje, a intervenção do médico frente ao paciente soropositivo se concentra em impedir que ele venha a adoecer, usando todos os recursos preventivos e terapêuticos disponíveis. Conceitualmente, ao contrário da estigmatização que se fazia, pessoas de risco são aquelas cujos comportamentos contribuem para seu próprio risco.
O autor questiona se, no caso de o parceiro ser informado que o outro é portador, faz diferença ser o homem ou a mulher quem está informando e se faz diferença a relação ser homo ou heterossexual. Claro que faz diferença, e muita! Como é importante também o modelo cultural da sociedade em que se vive. Todos sabemos que existem abissais diferenças entre um relacionamento homossexual vivido em uma sociedade européia ou americana e uma relação assim vivida em um longínquo e desconhecido país da África Central.
Outra questão interessante com que o autor nos incomoda é se existe obrigação de informar parceiros anteriores depois de descoberta a presença do vírus e até quantos deles. Obrigação ética e moral, acredito que sim. Tenho dúvidas quanto à questão criminal.
Lá pelas tantas, o autor provoca com a pergunta: a obrigação de informar sobre a soropositividade muda em função de relações de maior ou menor risco? A resposta fica por conta de excitante exercício de raciocínio individual. Conceito de responsabilidade sempre vai correr em paralelo com conceitos de proteção, ética e dever moral.
O autor consegue realçar também um item atual, agora que vem à tona a podridão submersa sob os planos de saúde e medicinas de grupo em nosso país: o "apartheid" viral. Oriundo da sociedade, é o eco da reprovação moralista do prazer sexual em geral e do homossexualismo em particular. Esse "apartheid" é também o maior culpado pela disseminação crescente do vírus.
Essa rejeição ao soropositivo funciona como incentivo para que se mantenha ignorado o diagnóstico de portador, e a consequência é a disseminação ainda maior do vírus ou o isolamento social do infectado. Pessoas que desejariam levar uma vida afetiva com responsabilidade se deparam com a idéia de rejeição pelo preconceito. Sem citar aqueles que têm direitos como cidadãos e estão trabalhando, pagando impostos, necessitam sustentar suas famílias, enfim, precisam viver.
No final do artigo, há um grande espaço exaltando o uso do preservativo, e volta a polêmica questão da sua necessidade em relacionamentos duradouros e monogâmicos... Por fim, retrato típico dos tempos modernos, nos provoca perguntando se aquele que não se protege teria direito de reclamar contra quem o infectou.
São as novas perguntas dos novos tempos.

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