São Paulo, sexta-feira, 12 de julho de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Um Schapiro irreconhecível

LUIZ RENATO MARTINS
Schapiro (1904-1996), tanto pela reflexão quanto pela ação, está no eixo da história da arte moderna. Como "scholar" (Columbia, Nova York), assinou estudos de grande autoridade, eruditos e inventivos. Além disso, ao engajar seu posto "na situação" e ao cooperar com artistas, contribuiu para a afirmação e institucionalização do modernismo nos EUA, participando ativamente da formação da arte moderna do pós-guerra, quando Nova York se torna a sede da vanguarda.
O livro tem um teor memorial (o original é de 1979, aos 75 anos do autor). Reúne textos de 1937 a 1978, já veiculados, e próprios às tantas facetas do autor. Desigual nos propósitos e circunstâncias, estratégias e métodos, a heterogeneidade do livro não o priva de interesse, mas requer uma leitura informada.
De fato, como ligar os textos? Os alvos dos estudos variam. "A Natureza da Arte Abstrata" (1937), por exemplo, debate com o historiador formalista A. Barr e supõe a luta entre o stalinismo e a vanguarda de esquerda nos EUA, estimulada pela presença de Trotsky no México, a cujas posições Schapiro era ligado; assim, este critica o viés a-social e a-histórico da visão de Barr, buscando alinhar o abstracionismo, conforme o desígnio trotskista, contra o realismo stalinista.
"Courbet" (1941) mobiliza a iconografia e a crítica social, modelando uma via antiformalista. Os notáveis "Van Gogh" (1946) e "Cézanne" (1968) incorporam a psicanálise, e este último, em especial, questiona o formalismo que, desde R. Fry (um dos fundadores deste tipo de crítica na Inglaterra), fizera de Cézanne a pedra angular da visão formalista sobre a arte moderna. Formalismo que, com Greenberg, parceiro do autor em muitas ocasiões, polarizara a crítica de arte no pós-guerra em Nova York.
O "Chagall" (1956), o "Seurat" (1958) e o magistral "Mondrian" (1978) -que abrange da pintura holandesa do século 17 ao "Broadway Boogie-Woogie" (1942-3), visto como releitura do impressionismo-, remanejam a história da arte, com senso do concreto e do particular (1). O "Gorky" (1957), os "Cézannes" (1959 e 1963) são encomiásticos e, como outros, textos de efeito curto, de divulgação para o consumidor norte-americano não afeito à arte moderna.
Alguma constante nessa errância? Talvez o empenho do autor, raro na academia, para o debate da hora, o que o leva ao "corpo a corpo", às vezes com Panofsky no "Courbet' e, volta e meia, com a hegemonia formalista, quer antes, quer depois da guerra. Mas as suas premissas e alianças mudam muito e, nisso, denotam os azares das idéias, para não dizer mais, nos EUA: fora os estudos medievalistas (em moda nos anos 20, elogiados por Panofsky e ausentes do livro), o espectro vai do marxismo esclarecido, de corte trotskista, passa pelo individualismo eufórico ou fetichizado do macarthismo na década de 50 e chega ao tom sereno e soberano do especialista nos anos 70. Para o leitor dos EUA, o prestígio de Schapiro e a proximidade desses eventos talvez bastassem; fato é que o livro foi editado sem introdução. No Brasil, com razão, a edição ganhou prefácio. Infelizmente, para azar do leitor brasileiro, os óbices da versão local começam aí e não terminam, pois tomam a cena e tolhem o ato, não só crítico, mas até de mero reconhecimento da obra. O prefácio improvisado, na realidade uma resenha, (2) tem dois grandes defeitos: provoca confusão, pois liga-se, de fato, a um outro livro do autor, ao mesmo tempo em que propõe uma vaga visão de conjunto; e, como apresentação, tem a agravante da ingenuidade intelectual. Ignora a dimensão histórica: desconsidera debates e alianças decisivas e reduz a idiossincrasias posições ligadas a fatos tais como a crise social pós-29, os julgamentos de Moscou de 1936-8 e a invasão da Finlândia, a Segunda Guerra, a Guerra Fria.
A tradução leva a confusão preliminar a novos patamares. Malbarata todo o cuidado conceitual de Schapiro, que, com sóbria fluência, combina história da arte, psicanálise, marxismo e estética. Assim, "Armory Show" (3) vira "Exposição do Arsenal" (no título de um ensaio); os termos psicanalíticos "self" ("eu") e "displacement" ("deslocamento") viram "o ser" e "desvio"; o termo marxista "commodity" ("mercadoria") se torna "artigo"; o termo de Schopenhauer "will-less" ("sem-vontade") é traduzido por "involuntário"; o termo "genre" (próprio a um período e modo da pintura) por "pintura de gênero"; sem falar em "medium", que caberia deixar como tal (4) em vez do anódino "meio".
Além da malversação dos conceitos, a ilegibilidade surge no fio das frases, a toda hora, fruto de contrasensos, lapsos e omissões. Três ensaios cruciais, o "Cézanne" de 1968, o "Courbet" e o "Mondrian" são atingidos multiplamente. Neste, o autor usa o termo "diamond" ("diamante" e, secundariamente, "com a forma de losango") para se referir conjuntamente à forma da tela e à luminosidade dos quadros de Mondrian, cujo fundo define como "campo luminoso". A tradução "diagonal" perde toda referência à luminosidade. Outros erros: "mitred" ("mitrado") por "ângulo de 45 graus" (fórmula que apaga todo traço de relação entre Mondrian e a pintura precedente, no caso, com motivos religiosos); "modeling" ("tridimensionalidade") por "modelagem" (o que não faz qualquer sentido quanto a Mondrian); "painted lines" ("linhas pintadas") por "linhas pretas"; "intervening edges" ("limites intervenientes") por "limites intermediários da tela". E assim por diante. Possessivos, demonstrativos, genitivos, artigos, conjunções e locuções idiomáticas sofrem desventuras variadas, sendo frequente a supressão; citações em francês são vitimadas sem dó. Pelo menos 10 páginas apresentam trechos truncados ou com lacunas. Sem contar as inúmeras imprecisões de linguagem.
A revisão participa do "imbroglio" com repetidos anglicismos, trechos sem nexo, erros de pontuação e "pérolas" como: "independeu", "as vaginas estão sempre vigiando", "a representação podada de um objeto","seções frouxas dos andaimes da fase cubista de Mondrian" etc.
A tradução não tem remédio. Quanto ao todo, pede reelaboração, pois as reproduções são deploráveis: o preto e branco, não é nem isto nem aquilo, mas uma neblina cinza -na edição brasileira, embora o tamanho da página seja maior, a dimensão das imagens é menor (será para ocultar imperfeições?). Quanto às reproduções coloridas, as de Cézanne vêm borradas de vermelho; a de Van Gogh (cuja luminosidade tão especial não vem do claro-escuro, mas é obtida da própria materialidade das cores sobre a tela), jaz como extensão fosca na página... Descuido da gráfica (Imesp)? Se foi, fez jus ao papel evidentemente impróprio, pois as páginas deixam vazar o que têm no verso: tarjas escuras (quando no verso há outra reprodução) ou o vulto das letras invadem as imagens. A paginação traz outra falha: imagens a serem cotejadas, conforme o texto e a edição original, são aqui interceptadas, o que prejudica a operação.
Fica a sugestão: antes da publicação, submeter as provas de cada livro à comissão editorial ou a especialistas independentes.
NOTAS 1. O juízo de Schapiro sobre o "Broadway Boogie-Woogie" como "obra-prima" tem alcance estratégico, uma vez que Greenberg pusera uma série de restrições ao quadro (Cf. C. Greenberg, "The Collected Essays and Criticism", vol. 3, pág. 228, vol. 4, pág. 14).
2. W. Sauerlãnder, resenha de M. Schapiro, "Theory and Philosophy of Art: Style, Artist and Society", vol. 4, G. Braziller, 1995, publicado em "The New York Review of Books", 2/2/1995, págs. 28-32.
3. Nas traduções para o francês, o italiano, o espanhol e o português, consagrou-se o uso do termo "Armory Show" para a primeira grande mostra modernista ocorrida nos EUA (1913). Para o crítico norte-americano Rosenberg, "o Show é o equivalente, nas artes plásticas dos EUA, da tomada do Palácio de Inverno pelo proletariado de Petrogrado" ("The Anxious Object", Collier, 1973, pág. 187).
4. A partir de Greenberg ("Towards a Newer Laocoon", Partisan Review, jul.-ago. 1940), o termo "medium" ganha valor estratégico no meio artístico de Nova York e, a partir da década de 50, no auge da influência deste crítico, torna-se uma referência geral. Para assinalar tal valor, assim como a origem da noção própria à estética do romantismo alemão, conviria manter o termo "medium" (ver W. Benjamin, "O Conceito de Crítica de Arte no Romantismo Alemão", tradução de Márcio Seligmann-Silva, S. Paulo, Pólen, Iluminuras/Edusp, 1993).

Luiz Renato Martins é autor de "Conflito e Interpretação em Fellini" (Edusp/Istituto Italiano).

Texto Anterior: O silêncio de Orides
Próximo Texto: Radiografia de um mito
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.