São Paulo, sexta-feira, 12 de julho de 1996
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Uma psicanálise da ciência

ISAAC EPSTEIN

A primeira edição deste livro de Bachelard é de 1938, época em que a tendência dominante na filosofia da ciência estava centrada no grupo conhecido como "Círculo de Viena". Depurar a linguagem da ciência, construir o modelo da linguagem unificada, postular critérios para distinguir entre ciência e pseudociência, eram alguns dos ambiciosos projetos deste grupo. A análise sintática e semântica do produto da atividade científica constituía um de seus principais interesses.
A epistemologia de Bachelard é caudatária de uma tendência filosófica distinta, que valoriza o papel do sujeito na produção científica. Suas teses inscrevem-se na tradição histórico-crítica, segundo a qual a epistemologia da ciência deve basear-se no desenvolvimento histórico da relação sujeito-objeto. Desse modo, a realidade pesquisada pela ciência não é dada, mas descoberta pouco a pouco graças ao esforço metódico, e muda de aspecto sob a luz de teorias cada vez mais poderosas.
Os livros de Bachelard, já disse alguém, se parecem à suíte musical de Moussourgsky "Quadros de uma Exposição": são difíceis de resumir. Três temas, no entanto, sobressaem neste livro: a divisão histórica do pensamento científico em três períodos -o estado pré-científico, o estado científico e o novo espírito científico-, os seus obstáculos epistemológicos e a idéia de que o conhecimento científico carece e resulta de uma ruptura com o "saber" do senso comum.
Para Bachelard, a ciência não é construída pelo prolongamento do senso comum (como queria Émile Meyerson), mas contra e em oposição a ele. Assim sendo, o senso comum é a principal vertente dos obstáculos epistemológicos para se chegar à razão científica. "A experiência científica é, portanto, uma experiência que contradiz a experiência comum" (pág. 14). "Toda experiência que se pretenda concreta e real, natural e imediata, é obstáculo" (pág. 9). Em suma, a experiência não é observada, mas construída.
Apesar de não ser analisado nem analista, Bachelard estava de lua de mel com a psicanálise quando escreveu este livro. Só ela poderia subsidiar a superação dos obstáculos epistemológicos que eram de caráter ancilarmente psicológico. Mas a "sua" psicanálise, além de não ser freudiana, era profundamente moralista e ascética. "Juntos, vamos acabar com o orgulho das certezas gerais e com a cupidez da certezas particulares. Preparemo-nos mutuamente a esse ascetismo intelectual" (pág. 298). "Vimos que a dialética do real e do geral se repercute nos temas psicanalíticos da avareza e do orgulho" (pág. 299). Também sua dialética não é hegeliana nem marxista, mas tem um sentido próprio.
A partir da década de 60, novos ventos sopraram na epistemologia da ciência. A análise das revoluções científicas (Kuhn), a metodologia dos programas de pesquisa científica (Lakatos), o anarquismo epistemológico (Feyerabend) e as variantes destas tendências provocaram vivos debates. A relevância exclusiva atribuída ao contexto da justificação (tese privilegiada pelo Círculo de Viena) foi contestada pelos estudos de história e sociologia da ciência. Tornou-se impossível a visão de uma ciência asséptica e descontaminada pelo contexto de sua produção.
Estas novas vertentes na filosofia da ciência mantêm alguns pontos de convergência com a epistemologia histórico-crítica. Um desses pontos é o importante conceito bachelardiano de "cortes epistemológicos", que teve grande influência entre alguns historiadores da ciência, sobretudo Koyré. Indiretamente (por meio de Koyré), Kuhn menciona a idéia de ruptura, seminal em seu estudo das revoluções.
Mas Bachelard é um rupturalista radical. A ruptura deve ser permanente. "Todo saber científico deve der reconstruído a cada momento" (pág. 10). "Aceder à ciência é rejuvenescer espiritualmente, é aceitar uma brusca mutação que contradiz o passado" (pág. 18). "Com efeito, as crises do crescimento do pensamento implicam uma reorganização total do sistema do saber" (pág. 20). Contudo, o movimento permanente de ruptura, de descontinuidade contínua, demanda um referencial em relação ao qual a mudança ocorre. O conhecimento também demanda um momento de pausa para existir e para mudar. Esse antigo oxímoro já é discutido no diálogo platônico "Crátilo". Seria a radicalidade da ruptura bachelardiana apenas um efeito retórico?
A influência da noção de "corte epistemológico" foi considerável, principalmente nos autores franceses. Em Althusser, na sua leitura estruturalista de Marx; em Lucien Sfez, na sua postura em relação à questão dos vários níveis de racionalidade incompatíveis entre si.
Uma nova vertente nos estudos sobre a ciência, emergente na década de 80, toma como tema principal a prática científica, em especial, o laboratório científico, seus instrumentos e normas, enquanto fabricante de fenômenos e objetos científicos inexistentes na natureza. Esta linha de pesquisa passa a mostrar o caráter fundamentalmente social dos objetos e descobrimentos da ciência. O fenômeno artificial -que os pesquisadores descrevem em termos de uma realidade objetiva- recupera um outro termo de Bachelard, a "fenomenotécnica", que se torna um dos componentes conceituais do "new look" dos estudos sobre a ciência. A fenomenotécnica, ou seja, a construção do fenômeno científico no laboratório, é a pedra de toque nas novas tendências de análise do trabalho da ciência.
O tema dos obstáculos epistemológicos ocupa a maior parte do texto de Bachelard: a experiência primeira, o conhecimento geral, o obstáculo verbal, o conhecimento unitário e pragmático, o obstáculo substancialista etc. Com erudição e didática, Bachelard recupera episódios pré-científicos, principalmente do século 18. Os documentos historiográficos permitem-lhe mostrar de que modo os obstáculos incidem sobre o saber da pré-ciência. Descontando o tom moralista, sempre presente, a leitura destes trechos só pode incrementar a cultura científica do leitor.
O obstáculo da experiência primeira é colocado: "Nossa tese é a seguinte: o fato de oferecer uma satisfação imediata à curiosidade, de multiplicar as ocasiões de curiosidade, em vez de benefício, pode ser um obstáculo para a cultura científica. Substitui-se o conhecimento pela admiração, as idéias pelas imagens" (pág. 36). Bachelard descreve a fascinação que os fenômenos elétricos exerciam sobre as pessoas do século 18. Experiências públicas e exóticas atraíam um grande público. Era um "empirismo colorido": não é preciso compreender, basta ver. Esses experimentos (ou melhor, espetáculos coloridos), atraentes aos sentidos, constituíam, para Bachelard, obstáculos ao acesso à ciência abstrata e ascética. "Foi preciso aguardar a ciência 'enfadonha' de Coulomb para encontrar as primeiras leis científicas da eletricidade" (pág. 37).
Mas uma questão, que assume importância na atualidade, tem uma resposta negativa a partir das premissas de Bachelard. Se o senso comum é obstáculo à cultura científica, como divulgar a ciência para o público? Ora, é possível "ler" este obstáculo -sem dúvida, real- ao revés. Não seria justamente a exposição ao "milagre" da eletricidade (como se designava na época), mediante eventos espetaculares, mas em verdade destituídos de valor científico, que provocou um imenso interesse do público e impulsionou os pesquisadores a estabelecer as leis desta ciência no século 19? Não nos devemos esquecer que um dos maiores pesquisadores da eletricidade, Faraday, durante muito tempo organizou célebres conferências destinadas a divulgar os fenômemos elétricos aos jovens.
A divulgação científica necessita empregar efeitos retóricos, impressionar os sentidos e liberar a imaginação para conseguir adeptos. Muitas vezes, o resultado do trabalho teórico dos cientistas pode ter aplicações que tomam a forma de eventos espetaculares. As fórmulas abstratas da teoria de Maxwell abriram o caminho da descoberta das ondas hertzianas, cuja aplicação levou à maravilha do telégrafo sem fio e do rádio. O progresso da física teórica possibilitou o fascínio tétrico do cogumelo atômico. O insosso mapa do genoma possibilita a composição de insólitas quimeras.
Se, por um lado, a experiência primeira é obstáculo para a abstração exigida pela ciência, por outro, ela pode, mediante o deslumbrante e o exótico, ser a vitrina atraente capaz de despertar a vocação de muitos jovens para o caminho da pesquisa científica.
A tradução, em geral fiel ao estilo e à letra do texto, torna fluida a sua leitura.

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