São Paulo, sexta-feira, 12 de julho de 1996
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As formas do Estado

LAURA DE MELLO E SOUZA

Ao lado de Barrington Moore e Theda Skocpol, Charles Tilly é um dos expoentes da sociologia histórica norte-americana, conhecido entre historiadores devido ao clássico "A Vendéia". Apesar disso, só agora uma obra de Tilly é traduzida para o português, contando com um prefácio especialmente escrito para esta edição e com uma introdução de Karl Monsma, antigo aluno do autor.
A abordagem de Tilly abarca mil anos de história e toma como ponto de partida o "grande desafio de Perry Anderson" ("Linhagens do Estado Absolutista"): a sugestão de que a luta secular entre as classes se resolve na esfera política. "Espero que o livro revele três das preocupações da minha carreira: a história e a dinâmica da ação coletiva, o processo de urbanização e a formação dos Estados nacionais", afirma o autor logo no início do prefácio.
Em "Os Estados na História" (Cap. 1), Tilly introduz uma de suas idéias centrais: a da multiplicidade das formas do Estado europeu. A fim de captá-las na sua complexidade, traz para o âmbito da análise o problema da "organização da coerção e da preparação da guerra". Como o capital, a coerção se acumula e se concentra, e a forma como um e outro o fizeram, no decorrer da história, determinou o tipo de Estado daí resultante. Se as cidades foram o local preferido dos capitalistas, os soldados e a nobreza foram os agentes privilegiados da coerção; ao ganharem as guerras, tinham que administrar as terras e, ao fazê-lo, afastavam-se da guerra e enveredavam pela administração.
As forças militares abriram, desta forma, caminho para o controle civil do Estado. Que não se busque, entretanto, uma racionalidade evidente no percurso de centralização do poder que, na Europa, levou ao absolutismo, nem consciência acabada nos agentes que ajudaram a construí-lo; os principais componentes dos Estados nacionais -tesouros, tribunais, administração centralizada- foram construídos como "produtos secundários não-planejados" dos esforços voltados para a execução da tarefa maior e mais imediata: a criação e manutenção das Forças Armadas. As vitórias militares garantiram a sobrevivência da maior parte dos Estados, as derrotas, por sua vez, sendo as maiores responsáveis pelo desaparecimento de outros tantos, pois a mobilização para a guerra propiciava "os melhores ensejos para os Estados se expandirem, se consolidarem e criarem novas formas de organização política".
Antes que os Estados se constituíssem, entretanto, a Europa conhecera várias formas de organização estatal, que, numerosíssimas, foram aos poucos se concentrando em unidades. Neste processo, o papel das cidades foi imprescindível: cidades que controlavam seu interior e se destacavam no comércio internacional tinham "grande probabilidade de constituir o seu próprio Estado independente". Mas foi também contraditório. Recebiam o capital, distribuíam-no e articulavam o crédito e as trocas; quanto à coerção, organizavam as milícias de cidadãos -forma prévia aos exércitos mercenários e profissionais. Mas, uma vez ricas e poderosas, opuseram resistência eficiente ao Estado nacional, atrasando seu estabelecimento: são os casos de Veneza ou dos centros urbanos dos Países Baixos. Londres foi exceção à regra, talvez porque a monarquia inglesa tenha conseguido se consolidar antes que a cidade se transformasse em centro comercial importante.
No processo de formação do Estado, três trajetórias se delinearam: a de intensa aplicação da coerção, a de grande inversão de capital e a de coerção capitalizada ("Linhagens do Estado Nacional", cap. 5, título claramente alusivo à obra de Perry Anderson). Exemplos da primeira se encontram no Leste europeu: a Rússia se constituiu num contexto de escassez de capital e coerção abundante, que subordinava inclusive a estrutura social, com os nobres apoiando as formas coercivas. Veneza ilustra bem o segundo caso, com concentrações fracas e fragmentadas de coerção e grande influência dos capitalistas "sobre qualquer tentativa de criar um poder coercivo autônomo". As Ilhas Britânicas ilustram, por fim, a terceira trajetória, situada "no interstício entre o extremo coercivo e o capitalista" e caracterizada por um modelo de Estado em que o aparelho central podia ser mais leve na medida em que se via suplementado por ampla rede de poderes locais que, sem representarem empregos permanentes, trabalhavam para a coroa. A conjunção entre coerção e capital deu ao rei acesso a "imensos meios de guerra", mas lhe valeu concessões aos capitalistas: "A difícil aliança entre os senhores de terra e os comerciantes reduziu a autonomia real, mas fortaleceu o poder do Estado".
Como nem sempre as alianças eram possíveis, o processo de organização dos Estados ocasionava o conflito com os cidadãos, pois a maior parte dos recursos mobilizados para os exércitos proviera "do trabalho e da acumulação de pessoas comuns", que passaram a se opor e resistir aos Estados ("Os Estados e Seus Cidadãos", cap. 4). Conflitos internos reforçaram nos Estados o intuito de suprimir as heterogeneidades; enquanto internamente se caminhou para a homogeneização da vida -a cristalização dos símbolos nacionais, a padronização das línguas nacionais, a organização dos mercados nacionais-, externamente explodia a heterogeneidade, que opunha os Estados entre si. Os últimos estágios de formação do Estado europeu produziram os dois fenômenos díspares, normalmente chamados de "nacionalismo": o que se refere "à mobilização de populações que não têm Estado próprio em torno de uma pretensão a independência política"; o que significa a "mobilização da população de um Estado já existente em torno de uma forte identificação com esse Estado". Ambos se entrelaçaram e passaram a se interdeterminar no decorrer do século 20, acarretando, no limite, a fragmentação interna dos Estados, como no Líbano e na antiga URSS.
Mais um ponto alto na análise de Tilly é a relação que mostra existir entre o surgimento de um sistema de Estados europeu e da diplomacia e a generalização da guerra ("O Sistema Europeu de Estado", cap. 6). A dos Trinta Anos (1618-1648) -a mais mortífera de todas, até ser superada pelas guerras do século 20- fechou o período dos impérios europeus e consolidou a era dos impérios fora da Europa -novo palco, desde então, para os conflitos do Velho Continente. A Primeira Guerra Mundial misturaria o sistema europeu e o sistema mundial de Estados, internacionalizando irreversivelmente a guerra. Hoje, a guerra civil em grande escala, muitas vezes apoiada por potências, tornou-se mais comum do que o era antes de 1945, e terrivelmente destrutiva. Nos países pobres, os exércitos passaram a intervir mais ativamente na vida política -exceção feita para a América Latina, onde tal papel tem refluído nos últimos anos. Nem sempre estão voltados para a guerra, especializando-se no controle interno, o que não consola: "Quando os militares sobem ao poder, os direitos humanos caem".
Se é engenhosa e sugestiva a maior parte das fórmulas e das tipologias usadas por Tilly, outras parecem menos atraentes, como os segmentos em que divide a história européia de 990 a nossos dias ("patrimonialismo", "corretagem", "nacionalização", "especialização"). Há notável capacidade de comparar e estabelecer relações entre fenômenos históricos distintos no espaço; sobram brilho e capacidade de síntese; mas, apesar do destaque dado à história como elemento integrante da análise sociológica e do temor confesso ante o abuso das generalizações, "Capital, Coerção e Cidades Européias" desconcerta o historiador de formação. Vários séculos de história vêem-se comprimidos em quatro ou cinco linhas, soterrando-se a nuança sob a sem-cerimônia de afirmações cabais, que provocam vertigem. Tome-se um exemplo: "Após dois séculos de domínio muçulmano, os aventureiros normandos se apossaram da ilha no final do século 11. Os seus sucessores tornaram-se reis da Sicília e casaram-se nas famílias reais transalpinas. No dia de Natal de 1194, o sacro imperador romano Henrique 7º (...) apossou-se da coroa. Depois disso, membros das casas reais alemã, francesa ou espanhola governaram a Sicília até o advento de Napoleão".

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