São Paulo, sexta-feira, 12 de julho de 1996
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O que é ser jovem

HILÁRIO FRANCO JÚNIOR

Há poucas semanas, gerou polêmica a decisão de um ministro do Supremo Tribunal Federal que inocentava um acusado de manter relações sexuais com uma menor de 12 anos. A argumentação do magistrado, apoiada por parte da opinião pública, foi que "hoje em dia não há menina de 12 anos, mas mulher de 12 anos".
Outra parcela da sociedade, por sua vez, considerou tal veredito como a aceitação de "novidades imorais de nossa época". Alguns dias depois, as opiniões foram novamente divididas diante da estatística publicada pela Organização Mundial do Trabalho, segundo a qual 73 milhões de menores entre 10 e 14 anos de idade trabalham em todo o mundo. Para alguns isso é uma violência, para outros um fato normal em certos quadros sócio-econômico-culturais.
Essas e outras discussões muito atuais sobre a população jovem só podem pretender orientar comportamentos e transformar a legislação se contextualizadas, relativizadas. Enfim, se historicizadas. E para isso a "História dos Jovens" -organizada por dois importantes historiadores, o modernista italiano Giovanni Levi, da Universidade de Veneza, e o medievalista francês Jean-Claude Schmitt, da École des Hautes Études en Sciences Sociales- traz elementos interessantes.
Primeiro, por apresentar um leque temático bastante amplo sobre os jovens nas sociedades ocidentais: o primeiro volume cobre mais de 2.000 anos, dos jovens das "poleis" gregas aos do Antigo Regime; o segundo volume, a ser lançado proximamente, examina dos escolares e rebeldes do século 18 à juventude nazista.
Depois, a obra não se limita a uma única abordagem, oferecendo trabalhos metodologicamente diversificados, baseados em fontes variadas, míticas, literárias, iconográficas, teológicas, jurídicas. Enfim, ao reunir diversos estudiosos (oito no primeiro volume, nove no segundo), o livro permite ao leitor ter contato com uma saudável multiplicidade de perspectivas sobre o tema.
Desde as primeiras páginas, a "História dos Jovens" contribui para debates como aqueles citados acima, ao lembrar que "juventude" é construção social e cultural, não tendo limites etários e jurídicos precisos.
Para o romano Varrão, alguém é jovem entre 30 e 45 anos de idade, para alguns pensadores medievais, a juventude vai dos 21 aos 35 anos. Para os legisladores de Veneza, até 1360 considera-se criança a vítima de agressão sexual que tivesse menos de 12 anos, depois daquela data a fronteira etária passou a 14. Para os judeus do Leste europeu no século 17, é comum as meninas se casarem com 11 ou 12 anos.
Fica claro, portanto, que o conceito de juventude, suas formas de solidariedade, suas modalidades de atuação social, suas representações simbólicas, variam no tempo e no espaço.
Logo, não há resposta unívoca à questão sobre o momento a partir do qual o (a) "jovem" tem domínio consciente sobre sua sexualidade. Tampouco, sobre se os (as) "jovens" podem trabalhar ou devem apenas estudar.
Tanto num caso quanto no outro, é preciso considerar o quadro existencial dos "jovens": cidade ou campo, economia agrícola, pastoril ou industrial, sociedade autoritária ou democrática, tribal ou estatal, cultura letrada ou iletrada, religião politeísta ou monoteísta, clima glacial, frio, temperado, tropical ou desértico, regime demográfico deficitário, estável ou expansivo etc.
Mesmo no interior de uma cultura, a variedade de situações é grande. "Em determinadas épocas, indivíduos separados por rios, montanhas e séculos podem ser vistos, dependendo de suas circunstâncias de vida, habitando mundos semelhantes da juventude judaica, ao passo que, em outros casos, jovens judeus vivendo na mesma época, e até sob o mesmo teto, podem ter pertencido apesar disso -devido a distinções não tanto etárias, mas relativas ao sexo, estrutura social e mentalidade- a mundos radicalmente distintos" (pág. 98). Observação pertinente, perfeitamente aplicável aos membros de outras sociedades além da judaica.
Como todo livro importante, essa "História dos Jovens", além de fornecer ricas informações sobre seu objeto, questiona conhecimentos adquiridos, propõe novos olhares, explora novos caminhos. Mas, apesar de inegável qualidade, devido ao seu caráter coletivo, a obra não faz certos aprofundamentos e articulações que a teriam enriquecido ainda mais.
Seria bem-vindo, à guisa de conclusão, um balanço final no qual os organizadores, certamente com a mesma competência de sua bela "Introdução", poderiam ter amarrado e enfatizado os principais resultados obtidos.
Ali também poderiam ter sido discutidas e problematizadas algumas das novas possibilidades abertas pelos diferentes artigos, caso da utilização de documentação iconográfica. Da mesma forma, aquele teria sido o local para assinalar e completar eventuais lacunas, como por exemplo a ausência no livro dos noviços das ordens monásticas ou dos jovens estudantes e clérigos desenraizados conhecidos por goliardos.
Sobretudo, ali poderiam ter sido feitas análises que os objetos fragmentados dos vários estudos não permitiram aos seus autores. Caso do recurso ao comparativismo, discutindo por exemplo os pontos comuns e as especificidades da pederastia grega (amor homossexual entre o jovem e seu protetor adulto), do amor cortesão (no qual a mulher era talvez menos um objeto de desejo em si do que um elo entre o jovem cavaleiro e seu senhor), da sodomia renascentista (tão comum nas cidades italianas do século 15).
Como "um jovem só é jovem em relação a outros indivíduos que não o são" (Michel Pastoureau, pág. 250), teria sido interessante explicitar, a partir dos vários ensaios, a estrutura das relações entre os jovens, de um lado, e os demais grupos sociais, de outro. De toda forma, a obra coordenada por Giovanni Levi e Jean-Claude Schmitt é sem dúvida leitura obrigatória para todos historiadores sociais e, em geral, para todos que se interessam por aquela etapa da vida humana.

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