São Paulo, sexta-feira, 12 de julho de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

O romance perdeu seu lugar central na literatura

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Há ainda sentido em escrever romances? A revista "New Yorker" publicou recentemente um número duplo (edições de 24 de junho e de 1 de julho) dedicado à literatura de ficção, discutindo o assunto com certa ênfase.
Entre outras coisas, publica algumas cartas de Ernest Hemingway a seu editor (discutindo a censura a alguns palavrões em seu romance "Adeus às Armas"), um estudo sobre Borges e Neruda, escrito pelo tradutor deles para o inglês, Alastair Reid, um conto de Martin Amis, uma importante carta de Boris Pasternak.
O artigo mais polêmico da revista cabe, entretanto, a Salman Rushdie, que faz uma importante defesa do conto, da novela e do romance para aqueles que consideram o gênero ficção, de modo geral, em decadência.
O texto de Rushdie, romancista de considerável sucesso atualmente, é bastante persuasivo. A Morte do Romance, diz o autor de "Os Versos Satânicos", já foi anunciada muitas vezes, junto com a Morte do Teatro, a Morte do Livro, a Morte do Autor, a Morte do Leitor. Mesmo um romancista importante como V.S. Naipaul anunciou há algum tempo sua desistência do gênero.
Rushdie cita um outro escritor de peso repetindo a mesma tese: "O prestígio do romance é extremamente baixo hoje em dia"; acrescenta que muitas pessoas já dizem que "nunca lêem romances" com um certo orgulho intelectual.
Só que o escritor que fazia esse diagnóstico citado por Rushdie é ninguém menos que George Orwell, escrevendo em 1936 -época que conhecia o fastígio de Hemingway e Faulkner por exemplo. De modo que, conclui Rushdie, essa "morte anunciada" do romance é bastante imaginária.
Será? O argumento de Rushdie produz impacto, mas não é porque Orwell estava provavelmente errado em 1936 que os que repetem a mesma tese hoje estejam errados também.
Rushdie continua dizendo que, mesmo no exausto continente europeu, os últimos 50 anos mostraram o surgimento de romancistas como Albert Camus, Graham Greene, Italo Calvino, Guenther Grass, Vladimir Nabokov... Sem contar os países periféricos.
Todo o artigo de Rushdie se volta contra o diagnóstico pessimista do crítico George Steiner, que tende a achar que em cada época existe uma quantidade fixa de talentos artísticos, e que estes hoje em dia se voltam muito mais para o cinema, para o vídeo ou a publicidade, abandonando a literatura de ficção como área preferencial para se manifestarem.
Mas, argumenta Rushdie, e este talvez seja o ponto principal de seu artigo, que o número de corredores de maratona, por exemplo, não diminuiu com a maior popularidade relativa que outros esportes possam ter.
Não haveria, por assim dizer, uma cota máxima de talentos, um porcentual de genialidade que se desloque obrigatoriamente do romance para outros campos artísticos, deixando a ficção "a descoberto", em déficit de criadores.
Todo o raciocínio de Salman Rushdie é bastante razoável, e seu texto é brilhante nas ironias contra o tom de "fim- de-tudo" representado por George Steiner. Só que as coisas não me parecem tão simples assim.
É verdade, como diz Rushdie, que o aparecimento de novos esportes não diminuiu os feitos ou a quantidade dos atletas que se dedicam a modalidades mais tradicionais, como a maratona.
Mas a comparação entre modalidades esportivas e gêneros artísticos tem lá seus problemas. A forma, o "meio de expressão" escolhido pelo indivíduo de talento, não é exatamente uma coisa neutra, como poderia ser, no caso de um indivíduo dotado de aptidão atlética, essa ou aquela outra forma de esporte.
Um gênero como o romance, o drama ou o filme constitui, ele próprio, num ato significativo ao ser escolhido, utilizado ou remodelado por determinado autor. Grandes romancistas, ou romancistas de talento, podem continuar aparecendo, claro; o problema não é tanto o do "fim do romance", mas sim, e este me parece ser um problema concreto, o fim do lugar central que o romance assumiu na literatura até meados deste século.
Claro que a fotografia não destruiu a pintura, por exemplo. Ao contrário, ajudou a pintura a mais do que nunca liberar suas próprias potencialidades, talvez "ocultas" do público mais amplo pela necessidade que tinha de dar uma representação realista daquilo que retratava.
O problema é que determinado meio de expressão tende a ocupar ou não o "lugar central" em sua época.
O tempo dos romances que eram lidos "por todo o mundo", constituindo-se no fato cultural por excelência de um determinado período (o "Werther" de Goethe, por exemplo), parece ter passado. E isso interfere, claro, na atitude do autor, do indivíduo talentoso, quando pensa em se dedicar ao gênero.
Não foi por acaso que, quando o cinema começou a surgir, também os romances se liberaram, por assim dizer, das convenções narrativas, assim como a pintura se liberou com a fotografia.
Uma vez aberta a fase de exploração experimental e de "revolução" no gênero, grandes autores como Joyce puderam surgir.
Essa fase durou, grosso modo, até os anos 60, com o "nouveau roman" francês.
Curiosamente, creio que os romancistas posteriores se empenharam em recuperar a função da narrativa, do enredo, como que a negar a anunciada morte do romance.
Só que esse processo se deu sem muita grandeza, de uma forma oblíqua, "pós-moderna": o romance se impregnou da narrativa policial, fonte de inspiração identificável em quase tudo o que se apresenta como literatura de ficção hoje em dia.
Pode ser que estejamos conhecendo, como sugere o crítico Fredric Jameson em seu "Pós-Modernismo" (ed. Ática), uma visão mais democrática, menos ambiciosa da atividade artística como um todo, em que a expectativa de uma "grande obra-prima" teria se tornado uma coisa do passado.
Talvez as ambições tenham-se deslocado apenas para outro lugar. Saber que lugar é esse, aí é que está o problema; não é o menor dos esforços do "artista genial", precisamente, dar uma resposta a essa questão.

Texto Anterior: Jessica dá vida a Frances
Próximo Texto: '1337' revela a fraternidade com traços de assassinato
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.