São Paulo, sexta-feira, 12 de julho de 1996
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Paz aos nossos mortos

JOSÉ SARNEY

Na década de 70, o meu querido amigo Otávio Costa teve a idéia de criar uma diplomacia dos ossos para reavivar o nosso sentimento patriótico. Trouxe de Portugal os ossos de d. Pedro 1º, que percorreram o Brasil inteiro e, depois, tiveram o devido e eterno (?) repouso no panteon do Ipiranga, em São Paulo.
O caixão não podia ser aberto, fazia parte do acordo Portugal-Brasil, porque havia sempre o perigo de ossos trocados. E os portugueses bem sabem disso. A urna que continha os ossos de santo Antonio de Lisboa, venerada por séculos na igreja do mesmo nome, quando foi aberta, a grande surpresa: eram ossos de um pobre carneirinho!
Os ossos do nosso primeiro imperador andaram por todas as capitais. Em algumas, como em Recife, ainda estavam vivas na memória do povo as condenações à forca na Confederação do Equador, manifestação libertária do bravo povo pernambucano, e por isso a população recusou-se a receber aqueles despojos.
No Maranhão a coisa não foi tão radical, ninguém tinha nada contra ele, mas, também, ninguém tinha mais nada a favor. A urna fúnebre ficou solitária no Palácio dos Leões, poucos a visitaram.
O jornalista Erasmo Dias, tradicional boêmio da cidade de São Luís e grande escritor, estava, como em todas as noites, na zona do meretrício quando se lembrou que d. Pedro estava no Palácio dos Leões. Era alta madrugada.
Recolheu os bêbados retardatários das pensões de mulheres e organizou um séquito respeitoso que, cambaleante e silenciosamente, subia e descia as ladeiras desertas da velha cidade para prestar homenagem ao proclamador da Independência. Chegou ao Palácio, subiu as escadas do antigo prédio.
Na sala de lustres portugueses, luzes baças, o caixão dourado. Os bêbados se aproximaram. Erasmo foi o intérprete deles. Fechou o punho, bateu forte na tampa do caixão e falou com a voz embargada e roufenha, pela cerveja e pela noite:
"Guabiru! Guabiru! Papaste as melhores damas do Império!..."
Feita a homenagem, retiraram-se em respeitoso silêncio.
Agora, vejo que há no Brasil uma verdadeira idolatria aos ossos. Abrem-se todos os jornais e são notícias sobre exumação, busca de caveiras, cata de restos de ossadas, dúvidas sobre mandíbulas e arcadas dentárias.
Melhor fizeram na Argentina. As Madres de la Plaza de Mayo, esse símbolo comovente do amor materno, pela palavra de sua líder Hebe de Bonafini, nos seus 86 anos, proclamou:
"Nada resgata a vida. Não queremos exumações. Deixem em paz os nossos mortos. Não removam o nosso sofrimento. A morte não tem preço, a vida não tem retorno. Vamos continuar denunciando para que esses crimes não sejam esquecidos e jamais se repitam".
Está na hora de sepultarmos nossos mortos. Que eles repousem na eternidade de suas sofridas existências marcadas pela luta, pela crença em dias melhores e pelo infortúnio.
A procissão dos ossos viola o repouso eterno a que tem direito os mortos e os submetem a violações e ultrajes.

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