São Paulo, quarta-feira, 17 de julho de 1996
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O senhor da lagoa

CARLOS HEITOR CONY

Rio de Janeiro - Não é difícil localizá-lo. Na verdade, ele é mais fácil de ser olhado do que a própria lagoa. É visto até pelos povos estranhos que moram em outros lugares.
É o senhor não apenas da lagoa, mas de todo o Rio.
Não chega a ser objeto de culto, não pertence a nenhuma religião específica, embora tenha o visual e o nome do fundador de uma delas.
Sua carne é de cimento rude revestido de pequenas escamas, como as naves espaciais. Gigante de muitos metros de altura, com os braços abertos, não lembra uma cruz, lembra um abraço.
Tem fama de ser a maior estátua do mundo -e talvez o seja. Mas de tal maneira se integrou ao pedestal -um penhasco negro e formidável- que o conjunto é, de longe, o maior monumento criado pelo homem.
O carioca se habituou a ele e ele se habituou ao carioca. Incorporou-se à sua história e a seu anedotário. Judeus, ateus, comunistas, budistas -se os há por aqui-, todos concordam que ele é a cara do Rio.
É o primeiro a enfrentar os nossos temporais, o primeiro a ouvir os tamborins dos nossos morros na véspera do Carnaval, o primeiro a contemplar nossas enchentes e misérias, o primeiro a amanhecer em seu posto de trabalho para -como muitos outros cariocas- gastar o dia bestando, que a cidade é bela demais para se perder tempo com outras coisas.
Se for do nosso destino ser um dia destruídos por uma catástrofe, natural ou provocada, ele será a primeira vítima, o primeiro a morrer, com os seus imensos braços tentando proteger ou abraçar a todos nós.
É na lagoa que ele se reflete durante o dia e, fosforescente como uma sereia iluminada, passeia nas águas escurecidas pela noite.
Referência maior da cidade, é referência particular da lagoa. Todos o sabem ali, sempre o mesmo, oferecendo-se como símbolo, altar doméstico, âncora às avessas jogada contra o céu.

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